Ana Angélica Albano
Doutora em Psicologia Social
e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). E-mail: nanalbano@uol.com.br
RESUMO
O artigo apresenta uma
experiência em projeto social com crianças em situação de risco social e
pessoal, envolvendo uma pedagoga e um artista. Ambos estudavam na mesma
universidade, mas só se encontravam no trabalho. Dividiam responsabilidades,
mas não as partilhavam. Como professora de ambos, em disciplinas e institutos
diferentes, tive a oportunidade de acompanhar de perto seus embates. Proponho,
aqui, uma reflexão sobre a necessidade, apesar das dificuldades, de aproximação
de profissionais dos campos da arte e da educação. E, também, sobre a
importância de encontrarmos caminhos para a pesquisa em arte na educação, que
respeitem a especificidade do campo. Tomando como referência a psicologia
junguiana, procuro discutir a importância de encontrar na imagem o fio condutor
para a pesquisa em arte e a necessidade de desenvolvermos uma observação atenta
e cuidadosa durante a pesquisa, dando tempo para emergir tudo o que for
necessário ser descoberto.
Palavras-chave: Arte.
Educação. Psicologia junguiana. Pesquisa
com imagens.
ABSTRACT
This paper presents an educational experience in a
social project for children living in at-risk conditions, involving one
pedagogue and one artist. Both of them were working on the same project and
studying at the same university, but only met at the project site. They partook
of the same responsibilities, but didn't share them with each other. As I
taught both of these students, though they were in different institutes and
teacher training courses, I could follow their debates very closely. My aim
here is to reflect on the necessity, despite the difficulties, of bringing
together professionals from the fields of art and education. I also focus on
the importance of finding methodologies for art education research that respect
the specificities of this field. Using Jungian psychology as my primary
reference, I discuss the importance of using images as guidelines for research
in art and the need to develop very attentive and respectful observation
strategies, so that everything that needs to be discovered has time to emerge.
Key words: Art. Education. Jungian psychology. Research
with images.
Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio
Não é bastante não ser cego
para ver as florestas, as árvores e as flores
É preciso também não ter
filosofia nenhuma Com filosofia não há árvores
Há ideias apenas
Há só cada um de nós como
uma cave
Há só uma janela fechada
E todo mundo lá fora
E o sonho do que se poderia
ver quando a janela se abrisse
Que nunca é o que se vê
quando a janela se abre.
(Fernando Pessoa)
Os artistas são as minhas
cruzes!". Desabafa, no primeiro dia de aula, a aluna de Pedagogia,
referindo-se aos artistas com quem trabalhava em um projeto social, na
periferia de Campinas.
A aula, em questão, é de uma
disciplina da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) - Educação, Corpo e Arte -, obrigatória para os alunos do curso de
Pedagogia. É uma disciplina essencialmente prática, que não propõe um manual de
atividades a serem repassadas na escola, mas cujo objetivo é promover vivências
que possibilitem aos alunos reverem e ressignificarem sua relação com a arte e,
posteriormente, refletirem por que e como incluí-la (ou não) no currículo. Meu
desafio é levar os alunos a reconhecerem este lugar "sem lugar" da
arte e, se possível, despertar neles o desejo de fruição e expressão através
das linguagens artísticas.
Estamos ouvindo as
experiências que aqueles estudantes têm ou tiveram com arte. Os relatos não
variam muito: lembranças de desenhos para colorir na educação infantil,
enfeites de festa junina, a participação em algum grupo de teatro ou de dança
fora do currículo; com menos frequência, vêm à memória a visita a uma
exposição, o envolvimento com um grupo musical ou o coro da igreja. Às vezes,
alguém traz a lembrança de uma professora...
Apesar dos comentários pouco
estimulantes, se questionados sobre a presença da arte na escola,
invariavelmente, dizem que é importante porque desenvolve a criatividade e a
sensibilidade. E param por aí. Mas, naquela aula, que começou como as outras,
uma aluna, Caroline Silva, trazia uma experiência dissonante: os artistas são
suas cruzes.
Seu desabafo levou-me a uma
escola que atuei como professora, recém-saída da Faculdade de Artes Plásticas.
Após o primeiro dia de aula, numa 5ª série do ensino fundamental, trabalhando
numa sala projetada para aulas de arte, recebo da coordenadora pedagógica o
seguinte comentário: "Quando a senhora for trabalhar com estes materiais
rústicos (no caso, argila), a senhora poderia trabalhar no porão" (Albano
Moreira, 2007). Ao que respondi com a coragem da inexperiência: "Mas todas
as minhas aulas serão rústicas!". Rústicas, leia-se, modelagem com argila.
Naquela ocasião, a minha
cruz era a pedagoga, que não entendia as atividades de arte. Minhas lembranças
aproximavam-me, portanto, daqueles artistas cruzes.
Logo mais, descobri que um
dos artistas citados era Marcelo Polletto, aluno da licenciatura em Arte, que
eu vinha acompanhando havia oito meses, no estágio supervisionado. Conhecia
suas dificuldades, observava a angústia com que se debatia para encontrar uma
via de comunicação com as crianças com quem trabalhava. Era um aluno
extremamente falante, que tinha opinião para tudo, mas que estava mudo.
Permanecia nas aulas em silêncio e para tudo que eu sugeria ele apenas
retrucava: "mas é muito difícil na prática, mas é muito difícil, não, não
dá!".
Sempre havia ouvido com
empatia as angústias daquele aluno, mas, naquele momento, precisava compreender
porque ele era uma cruz para aquela pedagoga. E a resposta dela veio através de
muitas perguntas:
Por que brigar tanto por uma
sala boa, já que as crianças sempre sujam tudo? Por que insistem para que as
crianças não desenhem com lápis antes de pintarem com tinta? Eles têm umas
ideias que eu não entendo. As crianças pintam as paredes. Eles vivem dizendo
para encontrar a própria voz, que voz é essa se estão dando aula de pintura? E
eles sempre têm uma ideia na ponta da língua, um texto, um poema nas
reuniões... Para quê livros... se a aula é de pintura? Para quê música... se a
aula é de pintura! Para quê o violão na sala? Por que chamavam a sala de
ateliê? (Silva, 2003, p. 13)
Aquelas interrogações
ficaram ressoando muito tempo em mim e acredito que o mesmo acontecia com
Caroline, porque, meses mais tarde, me pediu que a orientasse no seu trabalho
de conclusão de curso (TCC). Ela queria entender, finalmente, essa "tal de
arte". E adotei o mesmo procedimento que adoto com todos os alunos da
Pedagogia que me procuram para orientação: pedi que frequentasse minhas aulas
de didática para o ensino de arte no curso de licenciatura em Artes Visuais.
Havia constatado que, em geral, os alunos que buscam orientação vêm à procura
de bibliografia e têm pouca ou nenhuma experiência artística. Sem a vivência no
assunto, leem e repetem apenas o que já foi escrito e, assim, dificilmente
acontece alguma transformação no modo de ver e compreender o problema que se
propuseram a estudar.
Ao convidá-los a frequentar
esta disciplina, minha intenção é aproximá-los das questões que preocupam os
futuros professores de arte, possibilitar que se familiarizem com os princípios
que norteiam a área e observar se, dessa forma, conseguem ir além da resposta
padrão de que arte serve para desenvolver "criatividade e
sensibilidade".
Como essas aulas aconteciam
no segundo semestre, e estávamos no início do ano, havia um tempo para um
trabalho preliminar. Ao invés de indicar uma bibliografia específica, sugeri
que exercitasse seu olhar para a arte, visitando exposições, assistindo a
filmes e observando as aulas das "suas cruzes" no projeto em que
trabalhava. Queria verificar o que a impressionava neste universo, sem um
roteiro prévio.
Depois de um semestre
observando, ela chegou para assistir as minhas aulas com mais interrogações e
nenhuma resposta. E, na nova turma, com os colegas do Instituto de Arte,
repetiu o exercício de se perguntar: O que é arte para você? Como a arte entra
na sua vida?
Depois dessa primeira aula,
ofereci vários textos para os alunos, que deviam escolher um para trabalhar
individualmente ou em dupla e, posteriormente, apresentarem para os colegas.
Caroline escolheu um texto do artista catalão Antoni Tàpies, dizendo que já
havia visto um vídeo sobre ele e fora surpreendida ao perceber muita semelhança
entre suas pinturas e aquelas das crianças com quem trabalhava. Como assistira
ao vídeo em catalão, sem legendas, o grande impacto foram mesmo as imagens. Foi
o primeiro movimento, ainda que tímido, para o entendimento de que as pinturas
podiam falar...
Quando percebi o quanto a
pintura de Tàpies a havia impressionado, encontrei a primeira via de acesso
para orientar o trabalho.
Um tempo para as imagens
Christian Gaillard (2004),
no texto Jung and the arts, ajudoume a identificar alguns procedimentos que
utilizo na orientação, enquanto método, que ainda não havia conseguido
explicitar com a mesma clareza. Propõe que, diante de uma obra de arte, a
atitude junguiana é fazer uma pausa, tão longa quanto for necessário, para
emergir tudo que for preciso ser descoberto. Realmente, o termo apropriado é
"deixar acontecer". Ele diz que Jung tem uma palavra para descrever o
primeiro estágio na análise de uma obra, o primeiro passo em seu método:
Ele usa o verbo duplo em
alemão: "geschehen lassen" - em francês "laisser advenir",
em inglês "to let happen". Deixar acontecer implica, também,
deixar-se impressionar, permitindo que a obra se apresente diante de você e em você,
dando espaço para isto e, então, abrindo sua percepção e consciência para que
as impressões, sensações e sentimentos venham, gradualmente, à superfície ou
que se imponham o mais emocionalmente possível. (Gaillard, 2004, p. 3)
O que procurei, através da
orientação, foi que a aluna se permitisse dar o tempo necessário para olhar e
perceber o que a impressionava, o que acontecia enquanto observava as imagens
que se apresentavam diante de seus olhos; fossem estas pinturas de um artista
ou de crianças. E, para isso, tivemos o tempo a nosso favor. Digo isso porque o
tempo da academia é muito curto para o amadurecimento de um TCC. Nem sempre
posso sugerir que o aluno detenha-se tanto tempo numa imagem. Mas, no caso
desta aluna, por um problema de demanda de horário do projeto onde trabalhava,
a orientação se estendeu por dois anos. Ela trancava a matrícula e voltava no
semestre seguinte, dando tempo para o texto acontecer.
Como ela já havia assistido
ao vídeo em catalão e identificado na obra de Tàpies a mesma gestualidade que
encontrava nas pinturas das crianças que coordenava, apresentei-lhe o vídeo
novamente, mas, desta vez, com legendas em português. Lendo as falas, ficou
surpresa ao perceber que suas impressões se confirmavam e constatou que imagem
e escrita podiam dizer coisas semelhantes. Sugeri, então, que copiasse todas as
legendas e as estudasse em conjunto com o texto de Tàpies que já tinha em mãos.
Quando encontrou em Tàpies
as cruzes, um símbolo recorrente em suas obras, as primeiras conexões começaram
a acontecer. O texto começava a ser escrito:
"A cruz é mais do que
um sinal de morte no cristianismo. É desde um símbolo universal das coordenadas
de espaço até como marcamos território, uma marca de destruição ou
negação" ( Antoni Tàpies). A cruz sempre fez parte da minha vida, da minha
educação cristã. Mas ela veio demarcar um outro momento, intrinsecamente
relacionado à minha relação com a arte. Um momento onde conceitos e
preconceitos começaram a ser destruídos, negados, desfeitos, desordenados, ao
mesmo tempo em que marcava um novo momento de me relacionar, estar, perceber e
olhar o mundo. Já havia ouvido dizer que imagens são textos, que podem falar
sobre o que nos cerca, sobre nós mesmos, sobre possibilidades, sobre
sentimentos, mas agora isso passava a fazer parte da minha vida de maneira
consciente e coerente, de meu repertório cultural. E nasceu na forma de um
incômodo. Marcando um novo olhar. (Silva, 2003, p. 11)
Em seguida, ela descreve o
encontro com suas cruzes:
(...) acabei acompanhando
parte de um processo de atividades de Artes Visuais, onde as crianças começaram
a pintar, desenvolvido por dois colegas. O Zé e o Poletto. Trabalhávamos
juntos, convivíamos, conversávamos, discutíamos, mas eles passaram a ser
"a minha cruz". Traziam-me um incômodo saudável. Começaram a demarcar
um novo território para mim. A convivência com eles, com as crianças que
participavam de suas atividades e com o modo como se relacionavam com as
crianças me incomodava e me intrigava. Sempre repeti o discurso de que a possibilidade
de participar de atividades artísticas era muito importante para as crianças,
isso "fazia muito bem para o desenvolvimento delas". Mas repetia o
que ouvia. Na verdade, não sabia por que. E, nesse momento, senti que não sabia
mesmo. (Idem, ibid., p. 13)
O trabalho havia começado e,
a partir daquele momento, definimos uma rotina: observar as crianças em
atividade, anotar as observações num caderno de campo, registrar em fotos as
situações que capturavam sua atenção. Nossas conversas, a partir de então,
giravam em torno destes registros.
Paralelamente, eu continuava
acompanhando o trabalho de Poletto com as crianças. Ele me trazia,
regularmente, uma pilha de pinturas e comentávamos detidamente cada uma. Quando
terminou a licenciatura, continuou indo a minha casa, levando trabalhos para
discutirmos os processos de cada criança e percebia que tudo que estávamos
descobrindo, o conhecimento que ele estava construindo, não estava chegando à
coordenação do projeto. Não estavam conseguindo ver por que não tinham os
instrumentos necessários para tanto.
Isso eu podia constatar,
claramente, pelas observações periódicas que Caroline me trazia. Ela ia ao
ateliê, olhava, mas não via o que estava acontecendo. Eu insistia, pedindo que
se deixasse impressionar pelo que as crianças produziam, que se permitisse
adentrar naquele território desconhecido. Afinal, já havia sido impressionada
pelas pinturas de Tàpies, que era um desconhecido também. Ela tinha uma visão
muito pragmática do que devia ser um bom trabalho, o que a impedia de ver o que
estava acontecendo no ateliê. E eu esperava pelo momento em que fosse capturada
pela poesia que via fluir nas pinturas daquelas crianças.
Procurei prolongar este
tempo de observação, evitando que recorresse, prematuramente, à bibliografia
especializada e continuasse a repetir conceitos que, na verdade, ainda não
faziam sentido para ela. Evidentemente, depois ela foi buscar suporte teórico para
dialogar com o que havia descoberto. Mas, naquele momento, queria ver se as
imagens falavam com ela, se podia aprender algo com as imagens. Esperava pela
experiência estética que as vozes-pinturas daquelas crianças seriam capazes de
provocar. Depois de um tempo neste exercício, finalmente, a bruma começou a se
dissipar e ela pôde enxergar o que acontecia naquele espaço.
Num dia que poderia ter sido
como os outros, Caroline estava circulando pelo ateliê, observando. Foi quando
reparou em Eliane pintando:
(...) Ia andando e parando
para observar algumas crianças, mas um tanto quanto mecanicamente. Foi então
que passei por ela. Pela Eliane, que pintava de costas para mim. Não deu para,
logo de imediato, olhar para o que ela estava fazendo, porque ela estava entre
o papel e eu, então dei alguns passos, olhando para frente e para outros que
pintavam ali, mas acabei voltando minha cabeça para trás para mais uma
olhadinha para Eliane. E aí olhei para o papel dela. Agora era possível
enxergá-lo, ainda que meu corpo estivesse meio retorcido, já que estava voltado
para outra direção. Eu ia continuar circulando. Mas parei.
Ela estava usando um pincel
de mais ou menos 2 cm de largura e, com a tinta preta, traçava linhas grossas e
circulares e as dispunha no espaço branco do papel, formando curvas como se
fossem antenas de borboletas. Eram quatro imensas que preenchiam todo o papel.
Nas pontas formavam caracóis. E meu corpo foi se colocando de frente para ela,
fiquei curiosa na expectativa do que viria em seguida, tive até o ímpeto de
perguntar, mas resolvi me calar e esperar. Observava a calma, a paciência e a
graciosidade com as quais ela pincelava o papel. Ela deixou o papel por alguns
minutos para se dedicar à tarefa de preparar as cores que usaria em seguida, partiu
para a mistura de tintas que estavam em sua "fôrmapaleta". E que
tarefa importante! Ela gastava muito tempo com cores primárias à sua disposição
e ia escolhendo algumas, com o pincel já molhado na água e limpo da tinta preta
anteriormente utilizada. (Silva, 2003, p. 40)
Todo esse movimento
aconteceu sem que ela esperasse e o descreveu, minuciosamente, com detalhes que
só são perceptíveis ao viajante que olha uma paisagem desconhecida pela
primeira vez. E terminou com as seguintes observações:
Eu não sabia que olhar
aquilo, as cores, os movimentos da Eliane e como tudo ia se organizando no
papel, podia me transmitir sensações. E, conforme eu fui me dando conta disso,
é que surgiu a vontade de chorar. Impactou-me o fato de me dar conta de que a
pintura da Eliane, ou melhor, meu contato com a pintura da Eliane e observá-la
pintando, fazia surgir sensações. Então, conclui que a pintura estava
conversando comigo e me fazendo conversar comigo mesma. (...) lembrei-me do
incômodo do meu amigo, pensei nas experiências que tive nas aulas de Educação
Corpo e Arte (...). Senti que realmente havia coisas intrigantes por trás dessa
história de arte. Senti novamente as perguntas "Para que arte? Que
importância ela tem?" crescerem dentro de mim e de repente achar uma
"luz". Essa experiência me proporcionou encontrar uma das respostas
às benditas perguntas que me perseguiam há tempos... Ela pintou mais dois
parecidos com estes que relatei. Como uma série, e deu para mim. Sem que eu
pedisse. (Idem, ibid., p. 42)
Territórios com fronteiras
bem demarcadas
Vivemos na escola a
demarcação de territórios, a delimitação de áreas de conhecimento. E estou
propondo aqui uma possibilidade de encontro. Mas um encontro que apenas pode
ocorrer quando, cientes das especificidades de cada campo, os sujeitos se
dispuserem a olhar, a procurar compreender as diferenças e, então, a iniciar um
diálogo.
Se os pedagogos não entendem
os artistas, poderíamos nos perguntar se estes se preocupam em se fazerem
entender. Tive o privilégio de acompanhar o processo de ambos os lados.
Percebia como o Poletto
entrava em conflito com as condições de trabalho e como precisou aprender a
negociar o tempo, o espaço e os materiais necessários para o tipo de atividade
que queria realizar. Precisou aprender a linguagem adequada para se comunicar
com os colegas das outras áreas e com cada criança, como organizar as
atividades, como impor limites, como acolher as diferenças. Precisava da
parceria com a coordenadora do projeto e isso demandou um longo aprendizado.
Após anos supervisionando
estágios de ensino de arte, constato que a maioria dos professores encontra
dificuldade em compreender o papel da coordenação pedagógica nos espaços
educativos que compartilham (e vice versa!). Muitas vezes, são rebeldes, outras
vezes submissos demais a programas e projetos externos e mal compreendem o
campo de conhecimento em que estão trabalhando. Não conseguem justificar a
especificidade da área de arte e, por isso, submetem-se às demandas normativas
dos programas oficiais, reproduzindo, com raras exceções, atividades que não
têm significado nem para eles, nem para os seus alunos.
Pela minha experiência
anterior, trabalhando com crianças e adolescentes, assim como, atualmente,
supervisionando estágios na Universidade, constato que professores que
entendem, com clareza, qual é o seu objeto de trabalho e demarcam seu
território podem, com mais possibilidade de sucesso, abrir as fronteiras e
olhar para o campo vizinho. Isto é, abrir é dialogar com o outro, seja este a
coordenação, os colegas de outras áreas ou os pais dos alunos; e,
consequentemente, conseguir melhores condições de trabalho.
A voz da pintura
Venho pesquisando, há alguns
anos, histórias de iniciação na arte, observando, particularmente, como o
desejo de criação torna-se obra. Tenho dedicado especial atenção às obras onde
se dá a perceber uma mutação no padrão de criação, que entendi ser o momento em
que se define a voz do artista (Albano, 2007), isto é, o momento em que o
artista se apropria da forma de um modo bastante pessoal, que passa a
caracterizá-lo e que chamei de "sua voz" em termos visuais.
O Poletto foi um aluno que
se interessou muito por essa pesquisa e resolveu observar como isso acontecia
com as crianças. Quando começou a trazer os trabalhos produzidos em suas aulas
para observarmos juntos, pude perceber como ele ia dando espaço para a voz de
cada criança aparecer, ao instrumentalizá-las nos projetos de pintura.
No momento em que Caroline
começou a observar a oficina de pintura, não somente como coordenadora, mas,
também, com olhar de pesquisadora, foi descobrindo como Poletto trabalhava com
as crianças, auxiliando-as na procura da própria voz. O que, no início, parecia
aos seus olhos apenas uma profusão de borrões estranhos, foi, aos poucos,
revelando projetos individuais de pintura, com motivos diferenciados. Pôde,
então, começar a responder a uma de suas primeiras perguntas: "Que voz é
essa, se estão dando aula de pintura?".
Ela observou que Poletto
deixava propositalmente alguns livros de histórias infantis, juvenis, livros
mais adultos e, também, enciclopédias à disposição das crianças. E percebeu que
esse acervo aumentava conforme a demanda. Havia, também, alguns livros de arte
com boas reproduções, que não estavam ali para serem copiados, pois não era
esta a proposta. Porém, na medida em que algum participante da oficina pintava
algo, que começava a se repetir e se constituir um projeto a longo prazo, o
professor tinha a oportunidade de mostrar alguma pintura que pudesse contribuir
para a ampliação daquele trabalho; alguma imagem que permitisse àquele aluno
identificar semelhanças, ampliar horizontes, possibilitando, talvez, a sensação
de pertencimento a uma "família visual".
(...) às vezes, contava um
pouco da historia do artista, mas o objetivo era que a criança pudesse se
expressar, usar, descobrir e desenvolver a própria voz. Ah! A Voz nas conversas
com o Poletto e em reuniões que participávamos juntos, fui começando a
compreender o que ele estava querendo dizer quando falava da voz. Nos objetivos
de sua oficina, estava sempre lá: Descobrir a voz interior. (Silva, 2003, p.
32)
Caroline começou a
reconhecer essa voz se diferenciando, quando observou o trabalho do Elias:
Não sei como o Elias começou
a pintar daquele jeito, nem quando descobriu que podia fazer aquilo, mas na
primeira vez que fui observar a oficina ele já estava completamente envolvido
naquele projeto. E outros, inclusive, o acompanhavam. Ele, primeiramente,
cortava um pedaço de papel da bobina, a maioria era de mais ou menos 70 por 70
cm, pouquíssimos ficavam menores que isso. Dobrava ao meio e ia recortando de
forma que os dois lados, ao abrir o papel, estivessem com o mesmo formato, em
espelho. Depois, ele cortava um pedaço de papel um pouco maior, colocava
"o molde" em cima e pintava sobre o molde, deixando a tinta,
propositalmente, espalhar sobre o papel de baixo. A marca do molde ficava ali,
lembrando um pouco a simetria das asas da borboleta. Ele pintava com rapidez e
presteza. Foi como se ele tivesse imergido nesse jeito de pintar. E foi
"sofisticando" as formas, as cores, fazendo coloridos com movimentos
diferentes, com pincéis, papéis maiores, menores, por vezes não usando "o
molde", mas a parte que sobrava do molde, num movimento contrário de
preenchimento do papel de baixo. (Idem, ibid., p. 37)
Começava, assim, a enxergar
a intenção que singulariza o modo de pintar de cada criança, "sua
voz":
(...) fui capaz de começar a
discernir as vozes deles. Embora o processo inicial fosse bem parecido em
todos, guardadas as diferenças de tamanho de papel, tintas e cores, pincel e
local escolhido para pintar, a partir desse momento cada um era um. Fui
aprendendo a conhecer o timbre da voz diferente na produção de cada um (...)
passei a saber quem tinha pintado o quê pela maneira como pintavam, e pelo quê
pintavam(...). Esse outro jeito de falar. Essa outra e também mesma voz. Olhava
e dizia: esse é do Elias, né? E esse da Eliane! E esse do Rodrigo. E essa é a
série de transportes do Jefferson. Eles davam continuidade a algo que
descobriam, eram provocados pelo Poletto a tentar ir mais fundo e não abandonar
o descoberto. (p. 35)
O caminho da imagem
Hillman (1991), referindo-se
às imagens oníricas, recomenda: "Detenham-se na imagem!". Ele
acredita que devemos levar a sério as imagens que nos tocam, devemos ter com
elas uma aproximação olfativa, reconhecê-las pelo cheiro, pois elas trazem
consigo um apelo sutil, mas complexo, que pode nos conduzir a um conhecimento
mais profundo das coisas e de nós mesmos. Creio que podemos aplicar o mesmo
princípio às imagens pictóricas que nos impressionam.
"Imagens são daimones
oferecendo indicações do destino", adverte Hillman, acrescentando, em
outro momento: "Uma imagem particular é um anjo necessário, esperando por
uma resposta. Como saudamos este anjo, depende da nossa sensibilidade para a
realidade da sua presença" (1991, p. 50-51).
Deixando-nos guiar pela
imagem inicial, das cruzes, que Caroline trouxera na primeira aula, amplificada
pelas pinturas de Tàpies, encontramos o fio condutor que a levou, finalmente, à
observação das crianças pintando e ao reconhecimento da singularidade que se
manifestava em cada projeto. Pôde, então, começar a refletir sobre "essa
tal de arte" e suas implicações no projeto educacional que coordenava.
Orientando este trabalho,
compreendi um modo junguiano de orientação, que corresponde à maneira como fui
formada, como pesquiso e ensino. E com Christian Gaillard (2004) pude dar forma
a este entendimento.
Jung usa o termo religião
como relegere, como reler, observar atentamente, considerar, reconsiderar e
pensar (Gaillard, 2004). E isso demanda tempo. Seria importante incluirmos esta
forma de relegere na educação, dando o tempo necessário para a observação
atenta na pesquisa, no trabalho cotidiano e nas relações com o outro.
Em entrevista a Suzi Gablik
(1997), Thomas Moore diz que, no Ocidente, perdemos a capacidade de
contemplação, porque achamos que, enquanto contemplamos, não estamos realizando
nada. O processo de criação, seja de criação intelectual, seja de criação artística,
requer tempo, assim como observar a si mesmo, confrontar a si mesmo, observar
as coisas, contemplar.
Venho refletindo sobre como
a experiência com a arte pode proporcionar a experiência com o outro. O outro
que está dentro de nós mesmos e o outro que está à nossa frente, manifesto em
uma obra.
Penso que o trabalho de
conclusão de curso proporcionou a Caroline esta forma de experiência,
possibilitando que pudesse confrontar-se consigo mesma, reconsiderar posições
e, finalmente, abrir-se para olhar o outro.
Tomei como objeto de
reflexão neste artigo a relação entre uma pedagoga e um artista, como um
pretexto, uma possibilidade de observar como a demarcação rígida de territórios
pode impedir que duas pessoas, trabalhando juntas e dividindo responsabilidades,
as compartilhem, sejam parceiras. Mas, principalmente, como uma oportunidade
para refletir sobre a função da arte como experiência que pode abrir os
sentidos e a percepção para o reconhecimento do(s) outro(s), quando há
disponibilidade para deixar-se impressionar, dando tempo para emergir tudo o
que for necessário ser descoberto. E, então, reconectarse com a relegere,
relendo, observando atentamente, considerando, reconsiderando e pensando.
Comecei com as artes visuais
e gostaria de terminar com o comentário de um músico, Du Moreira, sobre o
trabalho em parceria:
Parcerias podem se dar de
várias formas, mas a verdadeira comunhão só ocorre por meio da compaixão (...).
Toda parceria artística deve ser fruto desse tipo de vivência. Nesse estado,
estamos antes das escolhas. Toda nota que cada um toca é imediatamente sentida
pelos outros, não como interferência externa, mas como presença sutil em suas
próprias almas. Respostas vêm simplesmente como continuações do movimento.
Fazendo música da paixão pela compaixão, instrumentistas escutam mais do que
tocam. (Moreira, 2003)
Fazendo educação da paixão
pela compaixão, os educadores poderiam observar e escutar mais do que falar.
Referências
ALBANO, A.A. Histórias de
iniciação na arte. In: ORMEZZANO, G. (Org.). Educação estética: abordagens e
perspectivas. Em Aberto, Brasília, DF, v. 1, n. 77, p. 85-95, 2007. [ Links ]
ALBANO MOREIRA, A.A. O
espaço do desenho: a educação do educador. São Paulo: Loyola, 1984. [ Links ]
GABLIK, S. Conversations before the end of time. New
York: Thames and Hudson, 1997. [
Links ]
GAILLARD, C. Jung and the arts. Palestra
apresentada no Seminário Internacional de Educação Estética, Faculdade de
Educação da UNICAMP, abr. 2004. (não
publicado). [ Links ]
HILLMAN, J. A blue fire. New York: Harper, 1991. [ Links ]
MOREIRA, D. Mani Padme.
2003. Disponível em: [ Links ].
SILVA, C.C. Aprendendo a
ver, alfabetizando o olhar. 2003. Trabalho de Conclusão de Curso (Pedagogia) -
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. [ Links ]
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