Estudos culturais, educação e pedagogia
Marisa Vorraber
CostaI; Rosa Hessel SilveiraII; Luis Henrique SommerIII
IUniversidade Federal do Rio
Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Luterana do
Brasil, Programa de Pós-Graduação em Educação
IIUniversidade Federal do Rio
Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Luterana do
Brasil, Programa de Pós-Graduação em Educação
IIICentro Universitário Feevale,
RS. Universidade Luterana do Brasil, Faculdade de Educação
RESUMO
Apresenta amplo panorama sobre o
surgimento, a constituição e o desenvolvimento dos Estudos Culturais como área
multifacetada de estudos que concebe a cultura como campo de luta e arena
política. Suas conexões e embates com os marxismos, os feminismos e sua
oposição ao racismo são focalizados, bem como suas aproximações e cruzamentos,
com vertentes teóricas e tendências metodológicas. Apresenta um esboço do seu
desenvolvimento na América Latina, com especial ênfase à identificação das
temáticas mais abordadas e dimensões mais freqüentemente polemizadas. Ressalta,
nesse caso, sua profunda imersão em questões culturais do continente, tais como
a tensão local-global, a hibridação de identidades, as audiências, dentro de
uma crescente multiplicidade temática. A partir do panorama desenhado, são
discutidas as relações entre Estudos Culturais, educação e pedagogia,
exemplificando-se com um breve esboço da pluralidade de trabalhos já realizados
em nosso país dentro desse campo, assim como através de uma reflexão específica
sobre a articulação entre os Estudos Culturais e a escola.
Palavras-chave: estudos
culturais, educação, pedagogia
ABSTRACT
Presents a panoramic view of the emergence, the
constitution and the development of Cultural Studies as a multifaceted area
which conceives culture as a battlefield and political arena. The connections
and clashes with Marxisms, feminisms and their opposition to racism are
highlighted, as well as their approximation and crossings with theoretical
issues and methodological tendencies. A sketch is made of their development in
Latin America, with special emphasis on those themes and dimensions which are
most frequently tackled and debated. In this case, the deep immersion in
cultural issues of the continent, such as the local-global tension, the
hybridisation of identities, the audiences, within an increasing thematic
multiplicity are emphasised. Starting from this panorama, the close relations
between Cultural Studies, education and pedagogy are discussed, presenting as
an example a short review of the plurality of works already carried out in this
new area in Brazil, as well as through a specific reflection on the linkage
between Cultural Studies and the school.
Key-words: cultural studies, education,
pedagogy
Os estudos culturais: uma
introdução
O que é, afinal, Estudos
Culturais? Esta frase e outras similares intitulam, no Brasil e em muitos
países, alguns livros e artigos1 cujo objetivo tem sido definir os contornos da
movimentação intelectual que surge no panorama político do pós-guerra, na
Inglaterra, nos meados do século XX, provocando uma grande reviravolta na
teoria cultural. Se continuarmos a percorrer as publicações, perceberemos,
entre os textos mais disseminados, que as preocupações se concentram em
problematizações da cultura, agora entendida em um espectro mais amplo de
possibilidades no qual despontam os domínios do popular. Aliás, a revolução
copernicana operada pelos Estudos Culturais na teoria cultural concentrou-se
neste terreno escorregadio e eivado de preconceitos em que se cruzam duas
noções ou concepções extremamente complexas e matizadas como cultura e
popular.2
Cultura transmuta-se de um
conceito impregnado de distinção, hierarquia e elitismos segregacionistas para
um outro eixo de significados em que se abre um amplo leque de sentidos
cambiantes e versáteis. Cultura deixa, gradativamente, de ser domínio exclusivo
da erudição, da tradição literária e artística, de padrões estéticos elitizados
e passa a contemplar, também, o gosto das multidões. Em sua flexão plural -
culturas - e adjetivado, o conceito incorpora novas e diferentes possibilidades
de sentido. É assim que podemos nos referir, por exemplo, à cultura de massa,
típico produto da indústria cultural ou da sociedade techno contemporânea, bem
como às culturas juvenis, à cultura surda, à cultura empresarial, ou às
culturas indígenas, expressando a diversificação e a singularização que o
conceito comporta.
Ao par disso, o termo popular
também é objeto de uma vicejante polissemia. Do popular ao pop,3 nomeiam-se
movimentações das mais variadas gamas. Popular tanto pode indicar breguice,
gostos e condutas comuns do povo, entendido como a numerosa parcela mais
simples e menos aquinhoada da população, quanto, na nomenclatura política das
esquerdas, expressar o fetiche do mundo intelectual politicamente engajado ou
mesmo as cruzadas contemporâneas em torno do politicamente correto. Nesta
oscilação cambiante do significado, popular e pop comportam gradações que, com
freqüência, apontam para distinções entre o que é popularesco, rebuscado,
kitsch e o que é sofisticado, despojado, minimalista. Como se percebe, as
palavras têm história, vibram, vivem, produzem sentidos, ao mesmo tempo em que
vão incorporando nuanças, flexionadas nas arenas políticas em que o significado
é negociado e renegociado, permanentemente, em lutas que se travam no campo do
simbólico e do discursivo.
Os Estudos Culturais (EC) vão
surgir em meio às movimentações de certos grupos sociais que buscam se
apropriar de instrumentais, de ferramentas conceituais, de saberes que emergem
de suas leituras do mundo, repudiando aqueles que se interpõem, ao longo dos
séculos, aos anseios por uma cultura pautada por oportunidades democráticas,
assentada na educação de livre acesso. Uma educação em que as pessoas comuns, o
povo, pudessem ter seus saberes valorizados e seus interesses contemplados. O
projeto inicial dos Estudos Culturais britânicos4 era "um projeto de
pensar as implicações da extensão do termo 'cultura' para que inclua atividades
e significados das pessoas comuns, esses coletivos excluídos da participação na
cultura quando é a definição elitista que a governa" (Barker & Beezer,
1994, p. 12).5
Desde seu surgimento, os EC
configuram espaços alternativos de atuação para fazer frente às tradições
elitistas que persistem exaltando uma distinção hierárquica entre alta cultura
e cultura de massa, entre cultura burguesa e cultura operária, entre cultura
erudita e cultura popular. Nessa disposiçao hierárquica, ao primeiro termo
corresponderia sempre a cultura, entendida como a máxima expressão do espírito
humano; segundo a tradição arnoldiana,6 "o melhor que se pensou e disse no
mundo". Ao segundo termo corresponderiam as [outras] culturas, adjetivadas
e singulares, expressão de manifestações supostamente menores e sem relevância
no cenário elitista dos séculos XVIII, XIX e XX. Harmonia e beleza eram
prerrogativas da cultura, que deveria ser cultivada para fazer frente à
barbárie dos grupos populares, cuja vida se caracterizaria pela indigência
estética e pela desordem social e política. Só a harmonia suscitada pela
"verdadeira cultura" poderia apaziguar os ânimos, aplacar a ignorância
e suprimir a anarquia da classe trabalhadora parcamente instruída.
A tradição arnoldiana teve
defensores arraigados no século XX, que pretenderam fazer frente ao suposto
declínio cultural, à padronização da cultura e ao nivelamento por baixo
prognosticado por Arnold muitas décadas antes. Diante do risco do
"irremediável caos" que representariam os "temíveis avanços da
cultura de massa", chegou a ser publicado um manifesto propondo introduzir
nos currículos escolares um treinamento de resistência à cultura de massa,
qualificada como uma cultura comercial consumida por uma maioria ignorante e
inculta. Contra isso, pretendiam criar postos avançados em escolas e
universidades, nas quais grupos seletos de intelectuais atuariam como
"missionários" em defesa da "verdadeira cultura!" É, então,
a essa concepção elitista - em que cultura é um certo "estado cultivado do
espírito", que estaria em oposição "à exterioridade da
civilização"- que os EC vão se contrapor.7
Os trabalhos precursores dos EC,
apesar de não serem unívocos em suas perspectivas de problematização, estão
unidos por uma abordagem cuja ênfase recai sobre a importância de se analisar o
conjunto da produção cultural de uma sociedade - seus diferentes textos8 e suas
práticas - para entender os padrões de comportamento e a constelação de idéias
compartilhadas por homens e mulheres que nela vivem. Em seus desdobramentos, os
EC investem intensamente nas discussões sobre a cultura, colocando a ênfase no
seu significado político.
John Frow e Meaghan Morris
(1997), autor e autora australianos, referem-se à cultura "não como uma
expressão orgânica de uma comunidade, nem como uma esfera autônoma de formas
estéticas, mas como um contestado e conflituoso conjunto de práticas de
representação ligadas ao processo de composição e recomposição dos grupos
sociais"(p. 345). Por sua vez, Stuart Hall (1997a e 1997c) diz que na
ótica dos EC as sociedades capitalistas são lugares da desigualdade no que se
refere a etnia, sexo, gerações e classes, sendo a cultura o locus central em
que são estabelecidas e contestadas tais distinções. É na esfera cultural que
se dá a luta pela significação, na qual os grupos subordinados procuram fazer
frente à imposição de significados que sustentam os interesses dos grupos mais
poderosos. Nesse sentido, os textos culturais são o próprio local onde o
significado é negociado e fixado.
Analistas contemporâneos da
cultura chamam a atenção para a ocorrência de uma "revolução
cultural", ao longo do século XX, na qual os domínios do que costumamos
designar como cultura se expandiram e diversificaram de uma forma jamais
imaginada. A cultura não pode mais ser concebida como acumulação de saberes ou
processo estético, intelectual ou espiritual. A cultura precisa ser estudada e
compreendida tendo-se em conta a enorme expansão de tudo que está associado a
ela, e o papel constitutivo que assumiu em todos os aspectos da vida social.
Essa centralidade da cultura - ressaltada, entre tantos pensadores, por Stuart
Hall, Fredric Jameson, Néstor Canclini, Beatriz Sarlo, David Harvey - tem uma
dimensão epistemológica, que vem sendo denominada "virada cultural",
referindo-se a esse poder instituidor de que são dotados os discursos
circulantes no circuito da cultura. Um noticiário de televisão, as imagens,
gráficos etc. de um livro didático ou as músicas de um grupo de rock, por
exemplo, não são apenas manifestações culturais. Eles são artefatos produtivos,
são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e operam nas
arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são
estabelecidas. Para Hall (1997b),
[...] a cultura é agora um dos
elementos mais dinâmicos - e mais imprevisíveis - da mudança histórica do novo
milênio. Não devemos nos surpreender, então, que as lutas pelo poder deixem de
ter uma forma simplesmente física e compulsiva para serem cada vez mais
simbólicas e discursivas, e que o poder em si assuma, progressivamente, a forma
de uma política cultural. (p. 20)
Haveria duas importantes
determinantes históricas para a emergência e o desenvolvimento dos EC (Schwarz,
2000, p. 48-49). A primeira seria a reorganização de todo o campo das relações
culturais em decorrência do impacto do capitalismo no surgimento de novas
formas culturais - TV, publicidade, música rock, jornais e revistas de grande
tiragem e circulação - que levam à dissolução o campo de forças do poder
cultural das elites. A segunda teria sido o colapso do império britânico, cujo
mapa territorial do poder diminui significativamente após a guerra contra o
Egito em 1956, revirando o imaginário social da Inglaterra. Nessa experiência
comum do fim do Império, a migração dos colonizados para sua "casa
imaginada" - a Inglaterra - coloca em primeiro plano as preocupações
políticas com as questões coloniais, sendo que alguns dos intelectuais que
contribuíram para esse redirecionamento das discussões culturais foram formados
na tradição britânica fora da própria Inglaterra.9 Surge uma nova geração
intelectual com novos posicionamentos, idéias e críticas. Para Schwarz (2000),
os Cultural Studies, na Inglaterra, foram uma "resposta directa à larga
renarrativização da Inglaterra" (p. 49). Sua leitura vai mais adiante,
contestando uma certa visão que coloca esses estudos como algo autóctone, que
teria emergido de uma matriz centralizadora britânica. De fato, diz ele, muitos
dos líderes intelectuais deste projeto eram periféricos a esta matriz.
Assim, a queda dos impérios
coloniais e os novos contornos da cultura no capitalismo teriam marcado
acentuadamente o surgimento destas movimentações na teoria cultural. O mais
antigo movimento dos estudos culturais teria surgido de uma variante paroquial
e provinciana. As obras The uses of literacy (Richard Hoggart, 1957), Culture and
Society (Raymond Williams, 1958), The long revolution (Williams, 1961) e The
making of the english working class (E. P. Thompson, 1963) foram todas
anteriores à disseminação da eletricidade como principal forma de energia e a
conseqüente popularização de aparatos tecnológicos que iriam transformar
radicalmente o acesso à informação e à comunicação. Hoggart só teria adquirido
um aparelho de televisão após ter publicado The uses of literacy (Schwarz,
2000). Mesmo nesta fase, não se pode dizer que os EC estavam centrados em torno
dos mesmos propósitos, projetos teóricos e políticos ou perspectivas
analíticas. De fato, eles teriam sido uma tentativa de reordenar as concepções
de classe e cultura, focalizando-as no simbólico e no vivido e tentando
associar as culturas vivas ao poder. Muitas foram as incorporações em termos de
formas de estudo e perspectivas teóricas, inclusive com repercussões no
marxismo, passando as relações de classe a serem vistas como constituídas
dentro e fora do local de trabalho, na cultura. A questão do poder foi remetida
para o centro das discussões; se ele não estava nas estruturas do capital,
precisava ser problematizado na linguagem, no simbólico, no inconsciente. Todo
esse ecletismo resultou proveitoso, remexeu as tradições intelectuais e
permitiu que novos desafios fossem formulados e enfrentados (Schwarz, 2000).
Os Estudos Culturais não
constituem um conjunto articulado de idéias e pensamento. Como dizem seus
cronistas mais contundentes, eles são e sempre foram um conjunto de formações
instáveis e descentradas. Há tantos itinerários de pesquisa e tão diferentes
posições teóricas que eles poderiam ser descritos como um tumulto teórico. Para
Stuart Hall- uma de suas figuras mais proeminentes e um dos mais conhecidos
analistas contemporâneos da cultura - os Estudos Culturais se constituíram como
um projeto político de oposição, e suas movimentações "sempre foram
acompanhadas de transtorno, discussão, ansiedades instáveis e um silêncio
inquietante" (Hall, 1996, p. 263).
Uma teoria viajante - temas,
tensões, problemas e aproximações
Foi Heloisa Buarque de Holanda10
quem usou a expressão teoria viajante para referir-se aos Estudos Culturais,
atribuindo-lhes um certo ethos, uma vocação para transitar por variados
universos simbólicos e culturais, por vários campos temáticos e teorias,
encontrando portos de ancoragem onde se deixam ficar e começam a produzir novas
problematizações. Os Estudos Culturais não pretendem ser uma disciplina
acadêmica no sentido tradicional, com contornos nitidamente delineados, um
campo de produção de discursos com fronteiras balizadas. Ao contrário, o que os
tem caracterizado é serem um conjunto de abordagens, problematizações e
reflexões situadas na confluência de vários campos já estabelecidos, é buscarem
inspiração em diferentes teorias, é romperem certas lógicas cristalizadas e
hibridizarem concepções consagradas.
Os Estudos Culturais
disseminaram-se nas artes, nas humanidades, nas ciências sociais e inclusive
nas ciências naturais e na tecnologia. Eles prosseguem ancorando nos mais
variados campos, e têm se apropriado de teorias e metodologias da antropologia,
psicologia, lingüística, teoria da arte, crítica literária, filosofia, ciência
política, musicologia... Suas pesquisas utilizam-se da etnografia, da análise
textual e do discurso, da psicanálise e de tantos outros caminhos
investigativos que são inventados para poder compor seus objetos de estudo e
corresponder a seus propósitos. Eles percorrem disciplinas e metodologias para
dar conta de suas preocupações, motivações e interesses teóricos e políticos.
As contribuições de importantes
pensadores sociais dos meados do século XX, como Louis Althusser e Antonio
Gramsci, juntamente com as análises culturais de Raymond Williams, Richard
Hoggart, Edward P. Thompson e Stuart Hall, ligados às movimentações iniciais da
Nova Esquerda, ajudaram a forjar a primeira linhagem de análises culturais
contemporâneas identificadas como Cultural Studies. Hall (1996) relata
associações dos EC com o surgimento da primeira Nova Esquerda britânica, num
momento de desintegração de um certo tipo de marxismo, aquele que se
desmantelava diante da visão dos tanques soviéticos invadindo Budapest, em
1956, e transformando em cacos um projeto histórico-político. Boa parte
daqueles que participaram do surgimento da Nova Esquerda pretendiam juntar
estes fragmentos para recompor a agenda do marxismo como projeto político e
trabalhar relativamente àquelas questões que ainda importavam e que poderiam
significar contribuições importantes a um projeto como o dos EC. Assim, diz
Hall (idem, p. 265), trabalhava-se o marxismo, trabalhando contra ele e com ele
para tentar desenvolvê-lo.
Como concordam vários autores
(Angela McRobbie, Cary Nelson, Lawrence Grossberg, Paula Treichler, Richard
Johnson, Stuart Hall e outros/as), os Estudos Culturais de origem britânica têm
sido um terreno conturbado de discussões e desencontros. Sardar e Van Loon
(1998, p. 52) apresentam um apanhado das críticas, que contestam seu
paroquialismo e anglocentrismo, sua ênfase nas questões de classe (em sua fase
inicial), em detrimento de raça e gênero, e sua abordagem preferencial das
expressões urbanas metropolitanas e dos rituais das assim chamadas subculturas.
Os EC teriam erigido a cultura popular britânica como modelar, compartilhando,
mais uma vez, uma noção de arte particularmente eurocêntrica em que são
celebradas as formas de arte popular britânicas. Apesar de seu propalado
discurso em defesa dos excluídos e marginalizados, são acusados de manterem-se
enredados numa tradição que persiste ligada à supremacia da cultura e da
civilização ocidental. Além disso, apesar de se ocuparem de questões da classe
trabalhadora, das mulheres, dos negros e outras minorias, eram presunçosa e
exclusivamente homens brancos de classe média que militavam nesse
empreendimento inicial.
Este criticismo permite situar
alguns impasses na constituição do que é identificado por Hall (1996) como o
legado teórico dos estudos culturais.11 De acordo com a visão deste
pesquisador, expressa no trabalho mencionado, não se trata de comentar o êxito
ou a utilidade dos distintos posicionamentos teóricos, e sim, de discutir
questões que dizem respeito ao relacionamento entre teoria e política. Os EC
podem ser tomados como uma formação discursiva no sentido foucaultiano. Eles
"abarcam discursos múltiplos bem como numerosas histórias distintas.
Compreendem um conjunto inteiro de formações, com as suas diferentes
conjunturas e momentos no passado. [...] foram construídos por metodologias e
posicionamentos teóricos diferentes, todos confrontando-se entre si" (p.
263). Para Hall, os embates dentro dos EC foram cruciais para testá-los nas
arenas culturais de um mundo moderno que se esvai e de novas ordens que se
instalam.
As aproximações iniciais com uma
prática crítica marxista demonstraram, desde o início, argumenta Hall (idem),
os desencaixes, pois era evidente sua insuficiência para dar conta de questões
que eram objeto privilegiado dos EC, como cultura, ideologia, a linguagem e o
simbólico. Além disso, a ortodoxia, o caráter doutrinário, o determinismo, o
reducionismo, a imutável lei da história, o estatuto de metanarrativa e um
inequívoco eurocentrismo seriam também incongruentes com boa parte do que já se
pensava e pretendia naquele momento (décadas de 1950 e 1960). Envolver-se com o
marxismo significou mergulhar em um problema. A uma certa altura, o que se fez
no Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham,12 durante cinco ou
seis anos, foi estudar tradições de pensamento que teriam contribuído para
forjar o marxismo com o objetivo de procurar superar os limites que ele
impunha. Quando o próprio Hall se aproximou da obra de Gramsci, isto teria se
dado na medida em que o pensador italiano procurava saídas àquilo que a teoria
marxista não respondia. E, nesse sentido, Hall não deixa de destacar o quanto a
contribuição de Gramsci foi importante no que diz respeito à discussão de
algumas questões que interessam ao estudo da cultura, despontando, entre elas,
a extremamente produtiva metáfora da hegemonia. (Hall, 1996, p. 267).
Sob a ótica de Johnson (1999),
apesar da crítica ao velho marxismo ter sido uma constante, tanto nas vertentes
literárias quanto nas vertentes históricas dos EC, há inegáveis contribuições:
A primeira é que os processos
culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente
com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a
estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda
é que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas
capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas
necessidades. E a terceira, que se deduz das outras duas, é que a cultura não é
um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e de
lutas sociais. (p. 13)
Com esta afirmação, Johnson
recupera a importância das contribuições do marxismo, concordando com Hall, em
que os elementos do marxismo, embora vivos e valiosos, precisam ser
constantemente criticados, retrabalhados e testados em estudos detalhados. E é
isto que acontece até os nossos dias.
Outro embate importante nos EC
diz respeito aos ataques advindos do movimento feminista e das lutas contra o
racismo (Hall, 1996; Johnson, 1999). Essa expressão - ataque - caracteriza o
sentido e os contornos dessa movimentação relativamente aos EC na década de
1970.
Segundo Hall (1996, p. 269), o
caráter sexuado do poder tornou-se evidente quando, em virtude do expressivo
crescimento e importância do movimento feminista no cenário dos anos de 1960 e
1970, o grupo masculino majoritário do Centro de Birmingham pensava que estava
na hora de incorporar um bom trabalho feminista nos EC. Contudo, as mulheres
invadiram o campo dos EC de forma intempestiva, repudiando qualquer promoção
masculina relativamente ao seu ingresso. Isto, diz Hall, foi uma experiência inusitada,
inesperada e radicalmente diferente, que o confrontava com a materialidade da
noção foucaultiana de saber-poder. Em vez da planejada desistência do poder, os
homens "transformados" e bonzinhos que abriam as portas às mulheres
estavam sendo silenciados, tomados de assalto, contestados ruidosamente, além
de expostos em suas ligações inequívocas com o arraigado poder patriarcal.
Desde então, a crítica feminista nos EC tem produzido parte significativa das
análises culturais que afetam os modos como as mulheres vêm ocupando espaços e
sendo reposicionadas nas políticas culturais.13
No que diz respeito à questão
racial, as lutas internas nos EC não foram diferentes. Os estudos, hoje
numerosos e vicejantes, sobre questões críticas de raça e racismo, são resultantes
de um longo, amargo e contestado combate interno contra um silêncio retumbante
e prolongado em torno desse ponto. Para Hall (1996), isto pode ser melhor
compreendido se situado numa conjuntura arraigadamente britânica, e a retardada
saída deste impasse tem conexões com as renhidas lutas da Nova Esquerda e suas
discordâncias com o marxismo. Aqueles que se empenharam em produzir estudos
voltados para esta questão enfrentaram imensa dificuldade para criar o espaço
teórico e político necessário ao desenvolvimento desse projeto.14
Outro campo polêmico, em ebulição
desde os primórdios dos EC, é aquele constituído pelo que tem sido criticamente
denominado de ortodoxia teórica do textualismo. Hall (1996) ressalta as
repercussões da virada lingüística para os EC, com suas conseqüentes ênfases
nas noções de discurso e texto, tomados agora em seu caráter produtivo e
constitutivo da experiência cotidiana, das visões de mundo e das identidades.
Segundo ele, também em relação a este tópico travou-se uma luta interna nos EC
britânicos, cujos desdobramentos certamente legaram um saldo positivo tanto em
termos de debates teóricos e compreensão da teoria quanto no que diz respeito à
produtividade destas noções nas problematizações da cultura. O confronto nada
tranqüilo entre trabalhos de cunho estruturalista, semiótico e
pós-estruturalista, bem como os embates entre estes e as tradições de
pensamento de vários matizes que inspiravam as análises do campo, não impedem,
contudo, que se deixe de reconhecer:
A importância crucial da
linguagem e da metáfora lingüística para qualquer estudo da cultura; a expansão
da noção de texto e textualidade, seja como fonte de significado, seja como
aquilo que elide ou adia o significado; o reconhecimento da heterogeneidade, da
multiplicidade dos significados, do esforço envolvido no fechamento arbitrário
da semiose infinita para além do significado; o reconhecimento da textualidade
e do poder cultural, da própria representação, como sítio de poder e de
regulamentação; do simbólico como fonte de identidade. (Hall, 1996, p. 271)
Hall argumenta ainda que as
conseqüências da virada lingüística para os EC far-se-ão sentir ainda por longo
tempo, reconfigurando as teorias, por ser preciso, agora, "pensar as
questões da cultura através das metáforas da linguagem e da textualidade"
(p.271). Isso representa um adiamento necessário, um deslocamento inevitável,
pois há sempre algo que escapa, descentrado, perdido no meio da cultura, na
linguagem, nos textos, nos discursos, na significação, e esse algo pode ser o
elo para localizar uma fonte de poder, aquilo que produz o significado a favor
ou contra tal ou qual política.
Quando se assume que a cultura
opera através das suas textualidades, o grande desafio de um projeto político
como o dos EC, que "tenta desenvolver-se como uma espécie de intervenção
teórica coerente" (idem, ibidem), é conseguir um registro teórico que dê
conta disto. Parece que a saída é aprender a viver em uma tensão constante,
testando permanentemente a vitalidade das teorias em confrontos com as
materialidades de suas práticas cotidianas. Viver nessa tensão é o preço de não
abdicar de pretensões intervencionistas. A exclusiva prática intelectual é
tranqüila. Atribulada, incerta, instável e cambiante é a prática intelectual
como política.
Tudo isso faz com que seja muito
difícil, senão impossível, chegar-se a alguma precisão ou consenso
relativamente a uma caracterização dos Estudos Culturais. Eles são muitas
coisas ao mesmo tempo, tensionando os panoramas intelectuais e acadêmicos em
que estão implicadas tanto as velhas e consagradas disciplinas como os
movimentos políticos, práticas acadêmicas e modos de investigação tais como o
marxismo, o pós-colonialismo, o feminismo, o pós-estruturalismo. Esse é o
motivo pelo qual são freqüentemente descritos como uma antidisciplina ou
pós-disciplina.
Hall (1996) diz que, apesar de o
projeto dos EC caracterizar-se pela abertura, recusar-se a ser uma
metanarrativa ou um metadiscurso, ou consistir num projeto aberto ao
desconhecido, ao inominável, não se pode reduzi-lo a um pluralismo simplista.
De acordo com Sardar e Van Loon (1998), toda esta dificuldade para definir os
Estudos Culturais não significa que "qualquer coisa pode ser estudos
culturais, ou que estudos culturais podem ser qualquer coisa" (p. 9). Há,
segundo estes dois autores, pelo menos cinco pontos distintivos dos EC. O
primeiro é que seu objetivo é mostrar as relações entre poder e práticas
culturais; expor como o poder atua para modelar estas práticas. O segundo é que
desenvolve os estudos da cultura de forma a tentar captar e compreender toda a
sua complexidade no interior dos contextos sociais e políticos. O terceiro é
que neles a cultura sempre tem uma dupla função: ela é, ao mesmo tempo, o
objeto de estudo e o local da ação e da crítica política. O quarto é que os EC
tentam expor e reconciliar a divisão do conhecimento entre quem conhece e o que
é conhecido. E o quinto, finalmente, refere-se ao compromisso dos EC com uma
avaliação moral da sociedade moderna e com uma linha radical de ação política.
Os Estudos Culturais na América
Latina15
Alasuutari (1999) faz referência
ao "carisma dos estudos culturais", que teriam se espalhado por quase
todo o mundo, e procura caracterizá-los da seguinte forma: "Eles têm
crescido e se expandido não simplesmente através das pessoas que trabalham
adotando os conceitos da Escola de Birmingham, mas principalmente porque essas
pessoas se identificam com os EC"(p. 92, grifos nossos). Neste sentido - o
da identificação de sujeitos e grupos de diferentes países com a atmosfera
intelectual e as propostas investigativas dos EC - certamente têm atuado
algumas condições marcantes da pós-modernidade, como as instabilidades do mundo
contemporâneo, a desintegração das narrativas mestras que o explicavam, as
inúmeras rupturas com a ordem estabelecida, a intensa conexão planetária
favorecida pela mídia, as novas questões trazidas por inéditas formas de
migração e desterritorialização, condições às quais os EC parecem corresponder,
produzindo encaixes temporários, porém fecundos.
Inúmeros países têm
"ancorado" EC,16 e isto não se deve, necessariamente, a uma migração
dos EC britânicos. Parece que as conexões entre os estudos que revolucionam a
teoria cultural contemporânea podem ser atribuídas, primordialmente, à
amplitude e abrangência destas movimentações no cenário de um mundo que se
torna transparente. A expressão "sociedade transparente", utilizada
por Gianni Vattimo (1991) para atribuir sentido ao pós-moderno, diz respeito ao
fato de vivermos em uma sociedade de comunicação generalizada, massificada,
onde tudo se torna visível, de variados ângulos e sob inúmeras versões. Segundo
o autor, o desenvolvimento vertiginoso das tecnologias da comunicação e da
informação - jornais, rádio, televisão, informática e afins- estaria associado
às crises do colonialismo e do imperialismo europeu, e teria contribuído
radicalmente para a dissolução de pontos de vista centrais, tornado impossível
a manutenção de uma concepção de história como curso unitário em direção ao progresso.
Os Estudos Culturais na América
Latina têm sido marcados simultaneamente por um grande florescimento e uma não
menos expressiva quantidade de polêmicas, críticas e negações de sua
legitimidade, sua relevância e seu status acadêmico. A existência, facilmente
comprovável por incursões na Internet, de centros universitários e de pesquisa,
e de programas de mestrado e doutorado que focalizam os Estudos Culturais (ou,
mais freqüentemente, os Estudios Culturales Latinoamericanos) sinaliza tal
florescimento, indicando que no Chile, na Argentina, no México, na Colômbia, no
Equador, na Venezuela, no Uruguai, por exemplo, há um conjunto- ou mais, ou
menos expressivo - de reflexões, estudos e iniciativas institucionais que se
filiam a esses estudos.
Mesmo que sua história ainda
esteja por ser escrita,17 conforme assinala Moreiras (2001, p. 355), é
possível, através de um sobrevôo por suas temáticas, características e
principais questões, esboçar um quadro que nos ajude a ver as formas pelas
quais - em sua especificidade - eles podem ser (e têm sido, como veremos
adiante) inspiradores para as reflexões em educação no espaço latino-americano.
As polêmicas iniciam pela
circunscrição do que "pertenceria" aos Estudos Culturais e o que não
seria específico do campo, já por si só caracterizado como teórica e
metodologicamente instável. De forma paradoxal, os nomes mais constantemente
associados aos Estudos Culturais na América Latina - Néstor García Canclini,
Jesús Martín-Barbero e Beatriz Sarlo- não são intelectuais que se reconheçam
alinhados ou se filiem aos EC de maneira inconteste. Efetivamente, os EC
capitalizaram e renomearam estudos de "análise cultural" que se
faziam na América Latina anteriormente, influenciando o seu desenvolvimento,
como afirmam, inclusive, os dois primeiros nomes citados anteriormente.
Martín-Barbero, por exemplo, declara, em entrevista prestada à revista
eletrônica Dissens em 1996:
Não comecei a falar de cultura
porque me chegaram coisas de fora. Foi lendo Martí,18 Arguedas19 que eu a
descobri, e com ela os processos de comunicação que se tinha de compreender.
[...] Nós havíamos feito estudos culturais muito antes de que essa etiqueta
aparecesse.
Também Canclini, conforme Mato
(2001, p. 1), teria afirmado que havia começado a "fazer Estudos
Culturais" antes de se dar conta de que eles assim se chamavam. Nomeações
à parte, é importante assinalar que a década de 1990 é reconhecida como a
década em que ocorreu a explosão dos EC na América Latina, marcada pela
realização de pesquisas sobre "consumo cultural", ora utilizando
metodologias quantitativas, ora estratégias qualitativas (entrevistas e
dinâmicas de grupo, por exemplo), expandindo-se por meio de estudos e
publicações de ensaios de maior fôlego. Cabe registrar, ainda, no que diz
respeito aos EC da América Latina, a freqüente utilização das expressões
"Teoria cultural" e "análises culturais", numa superposição
que torna difícil falar de fronteiras e limites rígidos em relação ao que se
vem entendendo por Estudos Culturais.
Nesse sentido, se há consenso
acerca da explosão dos EC na América Latina dos anos de 1990, é necessário
recuar no tempo para rastrear o contexto peculiar em que eles foram gestados.
Para Ríos (2002, p. 247), os EC latino-americanos podem ser definidos como
"um campo de estudos configurado dentro da tradição crítica
latino-americana", e, ainda que tenham significado uma ruptura
epistemológica com o que antes se fazia, inserem-se em uma importante tradição
do ensaio de idéias da América Latina, tradição esta que já vinha se
estabelecendo desde o século XIX. Além disso, há que se citar a efervescência
do panorama cultural nas décadas mais recentes, em muitos países
latino-americanos, como relembra oportunamente Mato (2001, p. 13), alertando
para que não percamos de vista
[...] a importância, para o campo
dos estudos e outras práticas em cultura e poder, das contribuições de Paulo
Freire, Orlando Fals Borda, Aníbal Quijano e numerosos intelectuais
latino-americanos que mantiveram e mantêm práticas dentro e fora da academia e
que, portanto, não necessariamente fazem "estudos", assim como dos
diversos movimentos teatrais e ativistas teatrais (os casos de Augusto Boal e
Olodum, por exemplo), o movimento zapatista no México, os movimentos e
intelectuais indígenas em quase todos os países da região (mas particularmente
em Chile, Bolívia, Equador, Colômbia e Guatemala), o movimento feminista, o
movimento dos direitos humanos, diversos movimentos de expressões musicais (a
nova canção, os rocks críticos, etc), o trabalho de numerosos humoristas
(Quino, Rius, Zapata e outros) e de cineastas (novo cinema brasileiro e outros,
etc.).
Se a questão das fronteiras e dos
contextos que constituíram condições de possibilidades para a eclosão dos EC
latino-americanos é um campo aberto para múltiplas explorações, também avultam
as discussões ligadas à sua nomeação. Assim, uma de suas denominações - Latin
American Cultural Studies- é objeto de discussão e contestação. Mato (2001, p.
6) entende que tal denominação os situaria nos chamados Area Studies, os quais,
em sua origem, estariam associados a projetos imperiais de produção de
conhecimentos sobre povos e nações dominados, conhecimentos esses produzidos
para uso das metrópoles. O autor venezuelano entende que é na academia
estadunidense que tem se estabelecido o cânone "válido" para os EC
latino-americanos, com a sacralização de alguns autores e a consagração de uma
leitura específica dos mesmos; além disso, ele expressa seu temor em relação ao
que identifica como uma influência despolitizadora dos EC estadunidenses, em
tópico que adiante retomaremos.
Com que dosagem os diferentes
elementos da química geradora dos EC latino-americanos - a influência dos EC
britânicos, estadunidenses e australianos, por um lado, uma tradição
latino-americana anterior e concomitante de ensaios críticos e análises
culturais, por outro - se misturaram, e com quais "resultados", não é
questão fácil de responder e nem é esta aqui nossa pretensão. Entende Moreiras
(2001) que "tal história também tem uma genealogia totalmente diferente,
bem como condições distintas de inscrição social e intelectual" (p. 355),
o que se reflete, por exemplo, em alguns temas recorrentes e diferentes
negociações que os trabalhos latino-americanos farão com trabalhos de outras
áreas. Como bem assinalaram Canclini e Martín-Barbero (apud Mato, 2001), o
encontro entre aportes e leituras dos EC, as tradições de estudo anteriores e novas
vertentes investigativas constituíram um sítio interessante para novas e
instigantes produções, mesmo que sobre elas possa recair o estigma de algum
sincretismo teórico e metodológico.
Em contrapartida, há que se
sublinhar que, a diferença dos EC britânicos, estadunidenses e australianos, em
que a circulação de textos dos diversos autores não sofreu qualquer
constrangimento advindo da língua utilizada na escrita, no panorama
latino-americano a questão dos idiomas que os intelectuais dominem ou não, não
é uma questão menor no panorama da legitimação e disseminação do que seriam os
"genuínos" EC. Mignolo (apud Mato, 2001, p. 10) observa que "o
espanhol e o português são idiomas que caíram do carro da modernidade e se
converteram em idiomas subalternos da academia". Isso explicaria um maior
sucesso daqueles acadêmicos que, geralmente em função de cursos de
pós-graduação e bolsas de estudo, exibem um significativo domínio da língua
inglesa, idioma em que, por exemplo, é publicado o conhecido periódico denominado
Latin American Cultural Studies. Interessante notar que - se se entende a
língua como um importante marcador de identidade - um dos temas mais caros aos
EC da América Latina - tal questão poderia ser considerada central à própria
discussão interna dos grupos de Estudos Culturais latino-americanos, o que
efetivamente não parece vir ocorrendo.
De forma similar à sua ação em
outros continentes, também na América Latina os EC vêm colaborando para a
implosão das linhas acadêmicas de separação das áreas disciplinares.
Castro-Gómez (2000, p. 157) afirma, por exemplo, que "a vocação
transdisciplinar dos estudios culturales tem sido altamente saudável para
algumas instituições acadêmicas que, pelo menos na América Latina, tinham se
acostumado a 'vigiar e administrar' o cânone de cada uma das disciplinas".
Para Moreiras (2001, p. 74), "as disciplinas mais seriamente afetadas pela
ascensão dos estudos culturais hoje" são os estudos literários, a
história, a antropologia e os estudos da comunicação. Em entrevista concedida
em 1994 (Canclini, 1997b, p. 79), Canclini registra a origem disciplinar
diferenciada dos primeiros pesquisadores dos EC da América Latina, afirmando:
Creio que essa corrente de
estudos é proveitosa no sentido de que é gerada de uma variedade de diferentes
disciplinas: Brunner, da sociologia, Martín-Barbero, da comunicação e
semiótica; meu próprio background é em filosofia, mas também sociologia,
crítica da arte e antropologia; Sarlo, dos estudos literários, e Ortiz,
antropologia e sociologia. Penso que o que temos em comum é o desejo de
encontrar uma maneira melhor de estudar os processos culturais de uma forma
multidisciplinar. Combinar tais abordagens é central ao projeto, uma vez que
entendamos processos culturais como processos que devem ser problematizados
mais como interconectados e interdependentes do que como fenômenos isolados,
que é a forma como são tratados na maioria das disciplinas.
Temáticas preferenciais dos
Estudos Culturais na América Latina
Como vimos, os Estudos Culturais
realizados na América Latina foram impregnados pelos contextos, problemáticas e
tensões vividas nos diferentes grupos e nações do continente, vindo a
mesclar-se com estudos anteriores que, de certa forma, foram revigorados. Para
Ríos (2002, p. 247), como os EC se ocupam da produção simbólica da realidade
social latino-americana (materialidade, produções e processos),
[...] qualquer coisa que possa
ser lida como um texto cultural e que contenha em si mesma um significado
simbólico sócio-histórico capaz de acionar formações discursivas, pode se
converter em um legítimo objeto de estudo: desde a arte e a literatura, as leis
e os manuais de conduta, os esportes, a música e a televisão, até as atuações
sociais e as estruturas do sentir.
Nesse sentido, pode haver uma
especificidade - como efetivamente há - em muitos estudos da vertente
latino-americana, mas - vistos em sua globalidade - eles se harmonizam com o
desenvolvimento mais global do campo, que se propõe multitemático e polifonicamente
interessado em quaisquer artefatos, processos e produtos que
"signifiquem".
A contestação da diferença entre
a "alta cultura" e a "baixa cultura" que caracterizou tão
profundamente o campo desde o seu surgimento pode ser comparada, por exemplo,
às análises que Canclini realiza das fronteiras entre "arte" e
"artesanato". Enveredando pelas vielas do consumo, da produção dos
chamados artistas populares e da mercantilização das tradições, que se situam
na arena da peculiar "modernidade" da América Latina, Canclini
observa o quanto, a um olhar "refinado" tradicional, a linha que
separa a arte do artesanato popular é traçada conforme as oposições dos cânones
tradicionais do "culto e popular": a arte é vista como
"movimento simbólico desinteressado, um conjunto de bens 'espirituais' nos
quais a forma predomina sobre a função e o belo sobre o útil", enquanto
"o artesanato aparece como o outro, o reino dos objetos que nunca poderiam
dissociar-se de seu sentido prático" (Canclini, 1998, p. 242); a arte,
como produzida por artistas "singulares e solitários", o artesanato,
por populares "coletivos e anônimos"; a arte, como referente a
"obras únicas, irrepetíveis"; o artesanato, como referente a
"objetos em série", reiterativos em suas estruturas. Submetendo tais
oposições a uma informada e aguda crítica, o autor latino-americano questiona
cada um desses parâmetros diferenciadores, e observa - numa afirmação que, de
certa maneira, estampa uma diretriz constante e definidora do seu trabalho:
Seria possível avançar mais no conhecimento da cultura e do popular se se
abandonasse a preocupação sanitária em distinguir o que teriam a arte e o
artesanato de puro e não-contaminado e se os estudássemos a partir das
incertezas que provocam seus cruzamentos (idem, p. 245).
Este é, apenas, um pálido exemplo
da pujança das análises que incidem sobre questões culturais da América Latina.
As hibridações - o importante conceito proposto por Canclini para a análise das
culturas latino-americanas, as identidades e sua fragmentação, as redes de
dependências, as relações entre tradição e modernidade, as transformações das
culturas populares, os consumos culturais são alguns dos núcleos temáticos mais
poderosos que deram e dão fôlego ao pensamento latino-americano nomeado como EC
ou lindeiro a esses.
Entre os traços comuns à maioria
de tais estudos, avulta uma insistente referência às transformações da América
Latina, nas últimas décadas, como decisivas para a modelagem das temáticas,
metodologias e focos de tais pesquisas. São recorrentes as alusões a mudanças
políticas (à derrocada dos governos militares, mais freqüentemente, com
conseqüente abertura de processos de democratização), ao surgimento dos blocos
econômicos (como Mercosul, por exemplo), ao declínio dos Estados-nação e de
outras instituições tradicionais (religião, escola) como referentes para a
identidade, ao mesmo tempo em que se alude à crescente e avassaladora presença
da mídia em todos os estratos da população, às transformações do lugar da
mulher no âmbito público e privado latino-americano, a questões como a das
populações indígenas e mudanças de enfoque de sua problemática, assim como a
atenção a atores sociais com relevância cultural mais recentemente atribuída,
como é o caso dos jovens, isso, sem falar nas novas preocupações com as
questões urbanas, entendendo-se as cidades como sítios privilegiados da
produção de significados culturais no fim do século XX e início do XXI.
Nesse sentido, um projeto levado
a efeito pelo Centro de Estudios Culturales da Universidade do Chile, cujo
delineamento encontra-se disponível na Internet,20 é exemplar pela riqueza de
sua trama conceitual e caráter revisor das questões que têm preocupado os EC da
América Latina. Denominado Identidades en América Latina: discursos y
prácticas, o projeto, contando com uma equipe multidisciplinar, coloca questões
que - descontada sua particularização à nação chilena - poderiam ser entendidas
como atravessando em grande escala os EC latino-americanos. São elas: Quais são
os atuais discursos que sustentam e/ou fraturam as identidades no Chile? Que
identidades articulam e expressam? Que identidades excluem? Quais são suas
coordenadas epistêmicas, éticas e sócio-históricas? Quais são seus espaços de
produção e circulação? Quais são seus dispositivos, estratégias e políticas
culturais?
Explorando um pouco a
potencialidade de tais questões, confrontadas com a pujante produção dos EC
latino-americanos, poder-se-ia enfatizar o lugar do "indígena" na
questão das identidades latino-americanas como um dos grandes eixos
inspiradores de trabalhos, assim como, já do ponto de vista da área da
Comunicação, a questão do consumo cultural dos produtos da mídia. Tanto uma
como outra questão se confrontam na tensão global x local, também presente em
significativo número de obras "fundadoras" e estudos acessíveis ao
leitor brasileiro.21
Em relação ao primeiro tópico,
perspicazes análises sobre a impossível pureza do indígena (expressão de
Martín-Barbero) são levadas a efeito por vários autores, como os já citados
Sarlo, Canclini e Martín-Barbero. Contrapondo-se às visões românticas que viam
no índio o "único traço que nos resta da autenticidade", o
"lugar secreto onde subsiste e se conserva a pureza de nossas raízes
culturais" (Martín-Barbero, 1997a, p. 260), o estudioso procura pensá-lo
dentro do espaço político e teórico do "popular", nem visto como
externo ao desenvolvimento capitalista, nem como simples molusco engolido por
sua voragem. Nessa direção, as pressões exercidas pelo consumo, pelo
mercantilismo, pelo discurso do exotismo e do rústico, dentro do cenário mais
amplo de um turismo que é, principalmente, fonte de sobrevivência, não podem
ser negadas nem demonizadas.
Enfim: tematicamente os EC da
América Latina têm mergulhado nos processos e artefatos culturais de seus povos,
na cotidianidade das suas práticas de significação, na contemporaneidade de um
tempo em que as fronteiras entre o global e o local se relativizam, se
interpenetram e se modificam. Um exame dos sumários de obras publicadas,
seminários, jornadas e revistas que têm abrigado trabalhos de EC nos aponta uma
variedade temática que congrega, por exemplo, dentro do campo mais amplo da
cultura popular urbana, a questão das culturas dos bairros populares, os
graffiti, a apropriação e a reelaboração musical, o rock e as subculturas
juvenis etc. Conforme Follari (2000, p. 5), encontramos, nos EC da América
Latina,
[...] textos de uma capacidade
previamente insuspeitada para amplificar o olhar sobre o mundo do microssocial
e dos fenômenos de constituição e modificação das identidades; sobre as
modalidades de agrupamento e de associação; sobre os procedimentos de produção
e de consumo cultural; sobre a invenção das tradições e configuração da
autocompreensão promovidas pelos estados nacionais.
Algumas discussões - os Estudos
Culturais na América Latina e a pós-modernidade
Por outro lado, uma questão como
as relações entre os EC e a pós-modernidade também está no fulcro dos debates,
uma vez que - em certos círculos - os Estudos Culturais teriam aparecido como
"o âmbito específico e exclusivo da discussão relativa ao tema
pós-modernidade - ao menos para muitos analistas teóricos e grupos de
leitores" (idem, p. 2). Em interessante discussão sobre a presença ou
ausência das discussões mais filosóficas da pós-modernidade dentro dos EC
realizados na América Latina, o citado autor (2000)22 observa que não encontra
dentro dos mesmos uma discussão aprofundada ou demorada, de cunho filosófico,
sobre a pós-modernidade. Para usar suas palavras:
[...] nada disso [referências a
Nietzsche, Heidegger, Derrida, Vattimo, Baudrillard, Lipovetski] aparece nos
estudos culturais e isso é simplesmente porque esses últimos são estudos do que
há no pós-moderno, mas não "sobre" o pós-moderno. São estudos sobre
identidades, sobre comunicação, sobre teoria literária e sua relação com a
cultura ou sobre os modos de constituição do nacional ou do
internacional/compartilhado. Porém seu objeto explícito não é o
moderno/pós-moderno, mas a cultura contemporânea, a qual está, obviamente,
atravessada pelos efeitos da passagem do moderno ao pós-moderno. (p. 7)
O referido autor efetua um detido
exame das superposições, encontros e desencontros das reflexões sobre a
pós-modernidade e as realizadas pelos EC na América Latina. Para ele, "o
pós-moderno não se entende sem os Estudos Culturais nem se entende somente com
eles", assinalando também a fecundidade das temáticas que os EC trouxeram
para exame, temáticas que não haviam aflorado em autores
"filosóficos". As temáticas do tempo presente, como a bastante explorada
questão da cultura juvenil, das bandas de rock, do fanatismo esportivo, ou da
música salsa, trazidas à boca de cena pelos estudos culturais (embora não
apenas por estudos que, nominalmente, se filiem a eles) na América Latina,
revitalizaram a reflexão sobre as contingências, articulações e buscas de
compreensão da pós-modernidade em nosso continente.
Em contrapartida, alguns
desenvolvimentos "filosóficos" relativos à pós-modernidade que cobrem
importantes aspectos teóricos, como o status do pós-moderno, a relação com a
modernidade, com o modernismo, com a modernização, com as temáticas do sujeito
e das ciências, ou não são tematizados nos trabalhos de EC ou o são apenas de
passagem (Follari, 2000, p. 6). Para o autor, efetivamente se observa uma certa
exterioridade de cada campo em relação ao outro- um se debruçando sobre a
cultura do pós-moderno e outro propondo uma teorização específica sobre a
pós-modernidade; ultrapassar tal alheamento mútuo, observa ele, ensejaria um
"mútuo fecundamento conceitual".
Alguns questionamentos relativos
aos EC na América Latina parecem advir justamente do entendimento de que eles
deveriam propor um entendimento universalizante, ou melhor, parecem resultar da
percepção do visceral enlace dos EC com os discursos da fragmentação e
relativismo típicos da pós-modernidade. Neste sentido, vale a pena dar voz às
inquietações de Canclini (1997a):
Quando menciono paradigmas ou
modelos não estou regressando ao cientificismo que postulava um saber de
validade universal, cuja formalização abstrata o tornaria aplicável a qualquer
sociedade e cultura. Mas tampouco me parece satisfatória a complacência
pós-moderna que aceita a redução do saber a narrativas múltiplas. Não vejo por
que abandonar a aspiração de universalidade do conhecimento, a busca de uma
racionalidade interculturalmente compartilhada que dê coerência aos enunciados
básicos e os contraste empiricamente. Foi esse tipo de trabalho que colocou de
forma clara que diferentes culturas possuem lógicas e estratégias diferentes
para ter acesso ao real e validar seus conhecimentos, mais intelectuais em
alguns casos, mais ligadas à sensibilidade" e à "imaginação" em
outros.
De certa maneira, as preocupações
citadas anteriormente - que certamente ecoam entendimentos modernos de conhecimento
- vão se articular, no desenvolvimento da argumentação de Canclini, a
preocupações que se conectam com o caráter político dos EC, em que o próprio
autor será objeto de ataques. Acompanhemos sua exposição, em que o apelo à
racionalidade (moderna?) também se faz presente:
Creio que o relativismo
antropológico que fica em um reconhecimento desierarquizado de tais diferenças
mostrou limitações suficientes para que nele nos instalemos. A necessidade de
construir um saber válido interculturalmente se torna mais imperiosa em uma
época em que as culturas e as sociedades se confrontam todo o tempo nos
intercâmbios econômicos e comunicacionais, nas migrações e no turismo.
Precisamos desenvolver políticas cidadãs que se baseiem em uma ética
transcultural, sustentada por um saber que combine o reconhecimento de
diferentes estilos sociais com regras racionais de convivência multi-étnica e
supranacional. (idem, ibidem)
Efetivamente, coexistem no
pensamento deste que é um dos mais importantes autores dos EC latino-americanos23
a constante busca de negação de certos eixos da compreensão moderna de mundo -
a negação das totalidades marxistas, por exemplo - com a procura de um ponto de
sustentação que justifique não apenas análises culturais das diferenças, mas
também a condenação das desigualdades tão manifestamente expostas na
contemporaneidade da América Latina. De maneira mais geral ainda, Canclini
(1997a, p. 2), em texto em que aborda o "mal estar dos estudos
culturais", aponta como uma das fragilidades de seu desenvolvimento na
América Latina a falta de uma mais consistente reflexão teórica e
epistemológica, alertando para o risco de uma "aplicação rotineira de uma
metodologia pouco disposta a questionar teoricamente sua prática" e
sugerindo um esforço maior nesse sentido.
Outra discussão: a despolitização
da teoria e da pesquisa
Também no caso dos Estudos
Culturais latino-americanos se fazem ouvir vozes que criticam a alegada
renúncia ao caráter político do campo, mesmo que elas atinjam autores e obras
que não tenham abandonado a intenção de uma ação política
"transformadora". Tomando como exemplo um dos livros considerados
centrais no campo - Consumidores e cidadãos -, pode-se resgatar a crítica mais
comum ao mesmo, a qual consiste na não-aceitação do nosso status de habitantes
da contemporaneidade como meros consumidores em vez de legítimos cidadãos.
Follari (2000, p. 2) aponta a leitura dessa obra e de outras dos EC
latino-americanos vendo-as como cúmplices de um caráter
"adaptacionista" dos Estudos Culturais. O slogan de Canclini, em
Consumidores e cidadãos - "O consumo serve para pensar" - certamente
foi um dos dispositivos motivadores de algumas dessas contestações. Já na via
inversa dessa crítica à despolitização dos estudos culturais, Martín-Barbero
propõe uma reflexão que ultrapasse os velhos cacoetes de uma esquerda apenas
preocupada com as ações reivindicatórias dos grupos "oprimidos" e de
suas ações de organização de classe, de uma esquerda que vê as práticas do
viver cotidiano mais como um "obstáculo à tomada de consciência do que
como ação política conseqüente" (Martín-Barbero, 1997a, p.289). E assevera
(p. 290):
O consumo não é apenas reprodução
de forças, mas também produção de sentidos: lugar de uma luta que não se
restringe à posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos
que lhes dão forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de
ação provenientes de diversas competências culturais.
Também é freqüente, em um
continente onde o pensamento social freqüentemente buscou força nos ditames
marxistas e críticos, a emergência de um certo desconforto em relação ao
abandono, pelos EC, de explicações ou totalizantes ou alinhadas ao discurso da
"libertação". Nesse diapasão, Castro-Gómez (2000, p. 158), entendendo
que a cultura urbana de massa e as novas tecnologias da informação têm sido
vistas nos EC latino-americanos como "espaços de emancipação
democrática", levanta a suspeita de que os estudos culturais teriam
"hipotecado seu potencial crítico à mercantilização fetichizante dos bens
simbólicos". E mais: o crítico atribui aos EC latino-americanos um novo
tabu - o da abordagem da "totalidade", seduzidos que estariam pela
fragmentação do sujeito, pela hibridação das formas de vida, pela articulação
das diferenças e pelo desencanto diante das novas metanarrativas. Não se trata,
para o autor, de reabilitar as velhas dicotomias da teoria crítica -
colonizador x colonizado, centro x periferia, opressor x oprimido, centro x
periferia - mas, sim, de tornar visíveis os "novos mecanismos de produção
das diferenças em tempos de globalização", através de uma
"descolonização" das ciências sociais e da filosofia.
Outra inconformidade alinhada ao
pretenso caráter despolitizante dos EC diz respeito à elisão do conceito de
classe social, tão caro às teorias críticas. Verdesio (2003, p. 4) assim
sintetiza tal crítica em relação aos mesmos:
A apropriação do popular [...] se
deve, entre outras coisas, à incorporação a um modelo teórico que quer ver
nelas [produções da cultura popular] uma confirmação, na maioria dos casos, da
falácia seguinte: na pós-modernidade, por fim, os marginalizados podem se
expressar. Entretanto, todas essas celebrações perdem de vista,
sistematicamente, as questões de classe. Quero dizer que os estudos culturais,
em geral, tendem a deixar de lado qualquer análise de classe possível. E isto,
em sociedades tão desiguais como as latino-americanas, se parece mais com um
pecado do que com um erro de perspectiva.
De qual lado estariam os
argumentos mais poderosos é uma questão cuja resposta dependeria de uma
incursão mais demorada, inadequada às dimensões deste artigo.
Apontamentos finais sobre Estudos
Culturais na América Latina
Em interessante entrevista dada
por Canclini a Patrick D. Murphy (Canclini, 1997b), o autor argentino-mexicano
traz algumas informações que podem enriquecer este breve esboço dos EC na
América Latina. Uma das questões colocadas pelo entrevistador, com respeito à
perspectiva feminista dentro dos EC da América Latina, é respondida por
Canclini através da marcação da diferença entre o feminismo americano e os
estudos sobre mulher na América Latina, além de reconhecer que, efetivamente,
esse enlace poderia ser mais forte no caso dos EC latino-americanos. Com
respeito às influências da Escola de Birmingham na formação dos EC do
continente, Canclini a reconhece, em certa medida, nos estudos de comunicação,
e também aponta a existência de outras fortes influências não diretamente
associadas aos EC, como a de Pierre Bourdieu, cuja importância, diz Canclini,
não tem sido oficialmente reconhecida. Por fim, quando questionado sobre
diferentes leituras do pós-modernismo pelos escritores latino-americanos e
pelos ensaístas clássicos, (como Jameson, Baudrillard e Lyotard), Canclini
aponta algumas diferenças (Canclini, 1997b, p. 87):
Na América Latina um conjunto de
distintas circunstâncias políticas impregna a articulação cultural; isto é,
existem diferentes formas nas quais modos tradicionais de vida são articulados
com os processos de modernização. A esse respeito, os escritores
latino-americanos têm mostrado uma elevada sensibilidade para reconhecer
formações culturais que não são necessariamente "modernas"; a memória
popular é um importante elemento que contribui para a mudança das culturas
contemporâneas.
As transações entre os EC dos
países americanos de língua espanhola e o Brasil, exceção feita a Canclini,
Martín-Barbero e Beatriz Sarlo, têm sido tímidas e incipientes, possivelmente
em função de certas dificuldades históricas de tal relacionamento, por parte da
intelectualidade brasileira, que, no caso específico, se tem abeberado nas
leituras dos autores ingleses, americanos e australianos, ora lidos em
traduções publicadas, ora em traduções "preliminares", ora no
original. Mas a dificuldade de acesso à bibliografia latino-americana publicada
nos diferentes países latino-americanos sobre EC também desempenha seu papel
neste distanciamento; enquanto os lançamentos sobre EC em língua inglesa são
pronta e expeditamente disponibilizados nas livrarias virtuais e grandes
editoras de língua inglesa, idêntico sistema na América Latina é precário e, em
alguns países, inexistente. Também a leitura de trabalhos latino-americanos de
EC aponta para um tímido aproveitamento dos estudos brasileiros, exceção feita
à produção de Renato Ortiz, celebrada pelos autores latino-americanos já
citados.
Por fim, há que se assinalar que
os EC não têm sido, na América Latina, apenas um manancial de estudos e de
polêmicas; institucionalizados em grande medida, eles também já constituem
"tema de cursos", inclusive na Internet. Nesta esteira, o Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) programa para o ano de 2003 um
curso à distância sobre "Los Estudios Culturales en Latinoamerica",
do qual disponibiliza aos internautas interessados um plano de estudo, de que
pinçamos um trecho por seu poder de síntese em relação ao campo cultural que é
focalizado por tais estudos na América Latina (Los estudios, p. 2):
No nível de conteúdos temáticos,
a cultura que os estudos culturais "criam" não é a mesma que haviam
criado, anteriormente, a antropologia, a sociologia, a economia ou as
humanidades. [...] A cultura que os Estudos Culturais "estudam" tem
menos a ver com os artefatos culturais em si mesmos (textos, obras de arte,
mitos, valores, costumes, etc) do que com os processos sociais de produção,
distribuição e recepção desses artefatos. Ao mesmo tempo, os estudos culturais
privilegiam o modo no qual os próprios atores sociais se apropriam desses
imaginários e os integram a formas locais de conhecimento.
Estudos culturais em educação:
que território é este?
A IV Conferência Internacional
Crossroads in Cultural Studies,24 realizada em Tampere, na Finlândia, em julho
de 2002, com o propósito de ser um fórum aberto às temáticas que pudessem
interessar a diversificada "comunidade" dos EC, apontou 21 tópicos de
interesse25 para articular o amplo e aberto debate com a participação de pesquisadoras
e pesquisadores de vários países. Entre estes, constava aquele que é nosso
principal foco de atenção neste artigo - Estudos Culturais, Educação e
Pedagogia - sendo apresentadas várias propostas de painel para discussão de
questões específicas relativas ao tema. Uma delas intitulava-se Cultural
Studies and/in/as Education (Estudos Culturais e/em como Educação), sendo
acompanhada da seguinte descrição:
A relação entre Estudos Culturais
e o campo da educação permanece curiosamente contraditória: ela é subenfatizada
no circuito dos estudos culturais em termos das relações históricas entre os
dois campos, todavia, em termos de produção de estudos, expande-se rapidamente
nos círculos da educação. Por exemplo, apesar da recorrente afirmação de
Raymond Williams de que os estudos culturais se originaram do campo da Educação
de Adultos, e apesar do fato de a atuação inicial do Centro de Estudos
Culturais Contemporâneos26 ter incluído trabalho em educação e dois sucessivos
Grupos de Educação, a educação de adultos como origem dos estudos culturais foi
marginalizada em favor de uma preponderante narrativa que coloca a crise nas
Humanidades e nas ciências sociais como momento originário dos EC, e a educação
não é mais discutida nos círculos dos estudos culturais como um campo
contributivo a este debate. Por outro lado, os estudos culturais emergiram e se
expandem rapidamente na educação radical na América do Norte como sucessores da
teoria e da pedagogia crítica e multicultural, além de estarem sendo
institucionalizados em departamentos de estudos culturais e centros de
educação. Este painel explora focos como a natureza e o perfil da relação
contemporânea entre estudos culturais e educação; a contribuição que estudos
culturais e educação podem aportar para seus discursos e práticas; exemplos de
projetos concretos que mesclam educação e estudos culturais. 27
A proposição de um painel com tal
descrição coloca em destaque o caráter controvertido dos laços entre Educação e
Estudos Culturais, revelando, ao mesmo tempo, estarem eles insuficientemente
problematizados e debatidos. No tópico Estudos Culturais, Educação e Pedagogia,
além do painel mencionado, cuja justificativa incide especial e centralmente na
necessidade de delineamento e debate destas polêmicas e plurifacetadas conexões,
um conjunto paralelo de propostas indica o variado matiz das discussões,
pesquisas e trabalhos que se inscrevem no âmbito destas aproximações.
Abordagens sobre questões de metodologia e política na escolarização dos vários
níveis, discussões sobre relações de poder no currículo e na sala de aula, bem
como contribuições aos debates sobre infância, cidadania, identidade nacional,
pedagogias culturais na pós-modernidade, a cultura do "outro", raça,
gênero e etnia no capitalismo neoliberal, efeitos da globalização e do
neoliberalismo na educação, o combate à contínua colonização dos saberes e das
relações sociais nas escolas emergem das várias propostas formuladas.
Convém destacar, contudo, que, se
continuarmos a percorrer o site desta conferência, perceberemos que de
numerosos tópicos - e não só deste intitulado Estudos Culturais, Educação e
Pedagogia - se poderiam recolher contribuições que interessam à educação e que
podem ajudar a ampliar a gama de formas de problematização que crivam, matizam
e complexificam os debates sobre educação nos dias atuais. Tomando apenas o
tópico Teoria cultural, poderemos observar que os painéis abordam as ligações
dos Estudos Culturais com conceitos-chave como liberdade, hegemonia,
resistência, poder e subordinação. Convocam, também, para uma discussão sobre
as conseqüências das grandes catástrofes contemporâneas sobre suas vítimas,
tais como os êxodos e diásporas causados pelas guerras e outros acontecimentos
dramáticos relacionados com atos terroristas, desastres ecológicos e a
violência nos centros urbanos, nas periferias e no campo, em muitos países. As
conexões entre cultura e poder são enfatizadas nos trabalhos que procuram
desafiar as fronteiras disciplinares mediante estudos que exploram a
transdisciplinaridade ou celebram a pós-disciplinaridade. Nessa direção surgem,
igualmente, as análises críticas à divisão do trabalho e às fronteiras entre
trabalho intelectual acadêmico e não-acadêmico. Incentivam-se debates sobre
temáticas emergentes nos movimentos sociais e em circuitos intelectuais fora do
eixo Europa América do Norte. A cultura das cidades é abordada com ênfase nos
discursos pós-modernos sobre o espaço urbano. A experiência de viver na cidade
é retomada nos cenários e problemáticas urbanas do século XXI, recompondo e
explorando representações em que exóticos "outros" são posicionados.
Também a natureza é discutida como o "outro" da cultura ocidental,
aportando novos e importantes elementos para um criticismo das visões
antropocêntricas. Estudos de mídia e literatura são articulados nesse
cruzamento com questões ecológicas, delineando novas configurações e espaços
para o encaminhamento destas preocupações.
Esse breve e superficial
levantamento das questões abordadas por apenas mais um dos tópicos - Teoria
cultural -, dentre os 2128 indicados para articular as discussões da
"comunidade" internacional dos EC, constitui uma boa amostra de sua
vitalidade. Não se verifica apenas uma surpreendente diversificação da gama de
temáticas culturais, como também uma ampla transformação no que diz respeito a
questionamentos e problematizações.
Se desejarmos pensar em Estudos
Culturais em Educação na América Latina, isso implica, mais uma vez,
refletirmos sobre os entendimentos compartilhados acerca desse campo ou desse
movimento que cruza fronteiras, inaugura formas diferentes de pensar sobre
quase tudo que acreditávamos resolvido, e não se quer estável, definitivo,
certo, demarcado, aprisionado em territórios geográficos, disciplinares,
teóricos ou temáticos. Uma possibilidade é conceber os Estudos Culturais em
Educação como um partilhamento de entendimentos, de conceitos-chave e
"formas de olhar" que eles trouxeram, principalmente, para as áreas
das humanidades, da comunicação, da literatura. Entretanto, isso soa um tanto
parcial e inexato, uma vez que não se trata apenas de "partilhar",
"apropriar-se" ou "utilizar"; as "lentes" dos EC
parece que vêm possibilitando entender de forma diferente, mais ampla, mais
complexa e plurifacetada a própria educação, os sujeitos que ela envolve, as
fronteiras. De certa maneira, pode-se dizer que os Estudos Culturais em
Educação constituem uma ressignificação e/ou uma forma de abordagem do campo
pedagógico em que questões como cultura, identidade, discurso e representação
passam a ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena pedagógica.
Se pensarmos o quanto a educação,
a partir das contribuições da teoria crítica, vem se configurando como uma área
de militância, de atuação política, vê-se quase como inevitável esta
aproximação com os EC, já que estes também, em sua constituição e
desenvolvimentos, têm uma face histórica de imbricações com a atividade
política e crítica. Em contrapartida, a educação e a pedagogia têm se valido de
vários outros campos disciplinares (Psicologia, Sociologia, Política, Medicina,
Administração, para citar os mais conhecidos), às vezes de maneira mais
restrita - vejam-se, por exemplo, entendimentos da pedagogia como mera
adaptação de "ações" a presumíveis "formas de aquisição dos
conhecimentos", predominantes nas chamadas pedagogias psi - outras, de
maneira mais eclética, o que tem sido mais freqüente. Assim, na medida em que
os EC incursionam por vários campos disciplinares, recolhendo, adaptando e
aproveitando metodologias, achados etc., há uma certa "homologia"
neste caráter híbrido tanto da educação quanto dos EC.
Se voltarmos nosso enfoque para
as conexões entre os Estudos Culturais da América Latina e o amplo campo da
educação, poderíamos experimentar uma decepção inicial diante da escassez de
trabalhos que tematizem tal relação. Não podemos, entretanto, cair na cilada de
que nada tenha sido dito ou feito nessa direção. Por um lado, temos esporádicas
- mas não banais - reflexões sobre o papel e as características da escola
dentro desse novo mundo híbrido, vista como um espaço em mudança nas novas
configurações culturais. Por outro lado, é forçoso reconhecer a existência de
estudos na área educacional que - principalmente através da influência dos
olhares foucaultianos, da visão cultural e outros da pós-modernidade-
aproximam-se grandemente do que se tem pensado no Brasil como Estudos Culturais
em Educação. O abandono das metanarrativas da modernidade, a concepção da
educação como campo de disciplinamento e de subjetivação, a consideração das
dimensões de etnia, gênero, inclusive utilizando (outros) autores, como Kellner
e Hall, marcam tais obras como temática e teoricamente aparentadas aos Estudos
Culturais.29
Voltando à primeira hipótese - à
abordagem da educação dentro das análises culturais, vemos que Canclini, por
exemplo, em Culturas híbridas, não silencia sua reflexão frente aos muros da
escola, mas a insere em seu poderoso pensamento, a partir, no caso específico,
de um postulado "A escola é um palco fundamental para a teatralização do
patrimônio" (Canclini, 1998, p. 164). Dialogando com estudos do campo
pedagógico latino-americano, o autor faz breves e poderosas incursões
motivadoras sobre os ritos, as práticas e os discursos circulantes na escola da
América Latina, os quais tanto auxiliaram a separar os "selvagens"
dos "civilizados", intentando construir estes últimos.
Também Sarlo tematiza a questão
da escola, mas, diferentemente de outros autores e consoante com seu pensamento
analítico, de certa forma lamenta uma escola perdida que não apenas teria sido
um "instrumento de dominação", mas também foi, na América Latina (ou
apenas na Argentina?), um "lugar simbolicamente rico e socialmente
prestigioso" que também "distribuía saberes e habilidades que os
pobres só podiam adquirir por meio dela", um "espaço laico, gratuito
e teoricamente igualitário onde os setores populares puderam apropriar-se de
instrumentos culturais que não deixariam de empregar para seus próprios fins e
interesses" (Sarlo, 1997a, p. 117-118). Valendo-se de um retrato
melancólico da escola atual, como o "lugar da pobreza simbólica", a
autora argentina questiona os discursos correntes da pedagogia atual, que
preconizam um "ensino tecnicamente modernizado que prepare para o trabalho
e que, além disso, seja interessante para os alunos" (Sarlo, 2001, p.
104), a partir de aguda e detalhada análise das características das práticas e
artefatos culturais contemporâneos.
Como exemplo singular de que
idéias advindas dos Estudos Culturais também têm entrado capilarmente na
reflexão pedagógica dos países de língua espanhola da América Latina, pode ser
citado o recente artigo publicado por Marisa Vásquez Mazzini30 na revista
virtual Pensar Iberoamérica - Revista de Cultura, sob o título aparentemente
tradicional Resultados para quién? Reflexiones sobre la práctica de la
evaluación em la escuela. Lançando mão de abordagens dos estudos culturais
(explicitamente citados) a partir de autores como Giroux, McLaren, Grossberg,
Steinberg e Kincheloe, a autora busca uma revisão da noção de prática escolar e
avaliação.
Entre nós, no Brasil, as
contribuições mais importantes dos EC em educação parecem ser aquelas que têm
possibilitado: a extensão das noções de educação, pedagogia e currículo para
além dos muros da escola; a desnaturalização dos discursos de teorias e
disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilidade de dispositivos
disciplinares em ação na escola e fora dela; a ampliação e complexificação das
discussões sobre identidade e diferença e sobre processos de subjetivação.
Sobretudo, tais análises têm chamado a atenção para novos temas, problemas e questões
que passam a ser objeto de discussão no currículo e na pedagogia.
Nessa direção, projetos de
pesquisa integrados ou individuais, trabalhos de iniciação científica,
dissertações de mestrado e teses de doutorado têm sido produzidos nos últimos
cinco anos, em especial no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Estudos
Culturais em Educação e em outros grupos que partilham de seu direcionamento
teórico. Em uma primeira vertente, poderíamos citar aquelas questões, discursos
e artefatos que, tradicionalmente tidos como pedagógicos, são ressignificados:
livros didáticos, cartilhas, legislações educacionais, revistas pedagógicas,
livros de formação pedagógica para professores, programas e projetos
educativos, a própria seriação escolar, a ciclagem e as classes de progressão,
a arquitetura escolar. Práticas escolares como a da merenda, da avaliação, ou
dos cuidados na educação infantil, entre outras, são problematizadas e
constituídas como objetos de estudo sob uma ótica cultural, oportunizando seu
esquadrinhamento e análise como produtoras de significados, como imersas em
redes de poder e verdade, em discursos circulantes, através dos quais se
legitimam determinadas representações de crianças, de menino e de menina, de
estudante, de professores e professoras, de trabalho docente, de alfabetismo,
de determinados componentes curriculares e de educação.
Outra vertente de estudos tem
sido aquela compreendida pela expressão "pedagogia cultural", a qual,
conforme Steinberg e Kincheloe (2001, p. 14), inclui "áreas
pedagógicas" entendidas como "aqueles lugares onde o poder é
organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais,
revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes etc.". Com
base nesse entendimento, têm sido investigados tanto variados veículos da mídia
jornalística impressa e televisiva, contemplando não só matérias
"informativas" mas também peças publicitárias, quanto produtos de
entretenimento, tais como filmes, desenhos animados, seriados de TV; neles se
têm buscado esquadrinhar seus "ensinamentos", pertencentes a uma gama
também muito variada, valendo-se daqueles referentes à própria educação
(escola, "progresso", professora, aluno etc.) e se espraiando para
outros campos, como as lições sobre o bem e o mal, sobre o que é ser mulher,
sobre o que é ser índio, sobre o que é a nação, sobre o que é natureza, sobre a
tecnologia, sobre o nosso corpo, sobre a genética, sobre como nossa relação com
os animais nos constitui "humanos" etc. Nessas lições, freqüentemente
se estabelece o normal e, concomitantemente, o desviante; o
"progressista", sinalizando para o "antiquado"; o certo,
sinalizando para o errado, em um panorama que, marcado pelas questões culturais,
é naturalizado e mostrado como "moderno", "atual",
"biologicamente condicionado", "estando na ordem das
coisas".
A questão das identidades - um
dos pilares dos EC e que também tem se revelado central nos EC
latino-americanos de língua espanhola - emerge com mais força nos trabalhos que
discutem a heterogeneidade e hibridação de algumas delas, como as de gênero, de
índio, de surdo (não mais visto como um "sujeito deficiente", mas
como uma identidade mergulhada em cultura própria), regionais (o
"gaúcho"), de jovem, de internauta freqüentador dos chats...31 Em
tais discussões, o confronto entre o global e o local, entre a modernidade e a
pós-modernidade, entre os discursos da tradição e os da contemporaneidade
midiática assume um caráter central, num panorama ao qual a educação não se
pode furtar, mesmo quando tenta mitigar a complexidade de tais processos.
Registre-se, ainda, que na
abordagem de todas essas questões, os estudos culturais em educação - aliás, de
acordo com sua vocação transdisciplinar e multifacetada - têm se valido de
contribuições metodológicas e teóricas de outros campos, em especial daqueles
com os quais mantêm maiores afinidades, como os Estudos Culturais da Ciência,
os estudos de Gênero, a abordagem Pós-Colonialista, a análise foucaultiana do
discurso, a Semiótica e a Análise Crítica do Discurso, os Estudos de
Comunicação, realizando a alquimia conveniente a investigações que se propõem,
como diz Giroux (1995) entre outras coisas, a "analisar a forma como a
linguagem funciona para incluir ou excluir certos significados, assegurar ou
marginalizar formas particulares de se comportar e produzir ou impedir certos
prazeres e desejos" (p. 95).
A articulação dos Estudos
Culturais com a escola: uma possibilidade
Finalmente, em nosso percurso
pelas movimentações dos EC e por seus cruzamentos com a educação e a pedagogia,
encontramos subsídios para afirmar que a educação se dá em diferentes espaços
do mundo contemporâneo, sendo a escola apenas um deles. Quer dizer, somos
também educados por imagens, filmes, textos escritos, pela propaganda, pelas
charges, pelos jornais e pela televisão, seja onde for que estes artefatos se
exponham. Particulares visões de mundo, de gênero, de sexualidade, de cidadania
entram em nossas vidas diariamente. É a isto que nos referimos quando usamos as
expressões currículo cultural e pedagogia da mídia. Currículo cultural diz
respeito às representações de mundo, de sociedade, do eu, que a mídia e outras
maquinarias produzem e colocam em circulação, o conjunto de saberes, valores,
formas de ver e de conhecer que está sendo ensinado por elas. Pedagogia da
mídia refere-se à prática cultural que vem sendo problematizada para ressaltar
essa dimensão formativa dos artefatos de comunicação e informação na vida
contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou produzem
as barreiras de classe, gênero sexual, modo de vida, etnia e tantas outras.
Esta é uma preocupação central
nos Estudos Culturais Contemporâneos, que Giroux (1995) sintetiza como "o
estudo da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma
como eles estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade,
o futuro e as diversas definições do eu" (p. 98). O próprio sentido de
texto é alargado, referindo-se a sons, imagens e dispositivos microeletrônicos
como os computadores e a Internet. Trata-se de textos culturais que no mundo
contemporâneo atravessam as fronteiras entre Estados Nacionais, cidades e
comunidades. É porque hoje nossos alunos e alunas passam mais tempo em frente à
televisão do que na escola (mas não apenas por isso), que o sentido de
realidade foi incrivelmente expandido. Simplesmente não podemos mais dizer que
partimos da realidade se não considerarmos o poder constituidor e subjetivador
da mídia no mundo atual.
Num breve recorte ilustrativo das
aproximações dos EC com a escola, queremos ressaltar, ainda, que os objetos e
temáticas que vimos mencionando estão relacionados com o que presenciamos em
nossas salas de aula hoje. Se até pouco tempo atrás ensinar a partir da
realidade significava considerar as particularidades sociais, econômicas e
culturais de um grupo de alunos, vamos argumentar que o conceito de realidade
foi sensivelmente ampliado para além de qualquer idéia de comunidade, de espaço,
tempo e lugar e, especialmente, de uma identidade cultural estável. Tal
compreensão, parece-nos, está diretamente implicada com o que vemos e deixamos
de ver em nossas salas de aula e, logo, com as direções, com as escolhas que
fazemos em termos do que ensinar e como ensinar. Se nos EC, a cultura é uma
arena, um campo de luta em que o significado é fixado e negociado, as escolas,
sua maquinaria, seus currículos e práticas são parte desse complexo.
Uma aproximação com o currículo
pode ser feita baseando-se na noção de campo de luta, crescentemente utilizada
nas análises curriculares críticas e pós-críticas32 que lançam mão da teoria
cultural contemporânea. Quer dizer, "podemos ver o conhecimento e o currículo
como campos culturais, como campos sujeitos à disputa e a interpretação, nos
quais os diferentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia" (Silva,
1999b, p. 135). Sendo construído culturalmente, o currículo reflete o resultado
de um embate de forças e seus saberes e práticas investem na produção de tipos
particulares de sujeitos e identidades sociais.
Esta noção, tomando contribuições
do pensamento pós-estruturalista, especialmente aquela proveniente dos
trabalhos de Michel Foucault, procura destacar uma certa dimensão do conceito
de poder que alarga os sentidos circulantes na tradição crítica. Em outras
palavras, não se trata de pura e simplesmente destacar que os grupos que estão
em posição hierarquicamente superior em uma relação de poder definem o que deve
ser ensinado, o que de fato ocorre, mas se trata de considerar a produtividade
do poder, para além do binarismo dominadores e dominados. Em outras palavras, o
que precisamos continuar a investigar, discutir, destacar, mostrar é a
positividade do poder, sua capacidade de produzir subjetividades e identidades.
É nesta direção que os Estudos Culturais têm enfatizado a produtividade dos
poderes e saberes no ordenamento da vida social.
No que se refere ao papel do
professor e da professora, novas formas de conceber a escola, os conhecimentos
e o currículo, desafiam-nos a ultrapassar a noção de transmissores de
informações. Sobretudo, seríamos produtores culturais e nossas práticas
pedagógicas deveriam privilegiar a organização de experiências através das
quais os estudantes pudessem vislumbrar o caráter socialmente construído
"de seus conhecimentos e experiências, num mundo extremamente cambiante de
representações e valores" (Giroux, 1995, p. 101).
Não se pode perder de vista uma
dimensão do currículo como "lugar de circulação de narrativas, [...] lugar
privilegiado dos processos de subjetivação, da socialização dirigida,
controlada" (Costa, 1998, p. 51). Ainda que o ideário emancipatório seja o
norte de nossas práticas docentes, ainda que objetivemos formar cidadãos
críticos e autônomos, e que tais concepções sustentem a seleção dos
conhecimentos e experiências que compõem o currículo, o que fazemos é
estruturar o campo de ação do outro, é governar sujeitos (Foucault, 1995).
Através das palavras que escolhemos (nos escolheram) para olhar para a educação
escolar e o currículo estamos compondo uma certa representação de realidade e
dirigindo condutas, produzindo determinados tipos de subjetividades e
identidades, sintonizados com a realidade que as palavras compõem.
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