A interdisciplinaridade como um
movimento articulador no processo ensino-aprendizagem
Juares da Silva Thiesen
Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Educação
Centro Universitário de São José,
Departamento de Educação
RESUMO
Discute a interdisciplinaridade
como um movimento contemporâneo presente nas dimensões da epistemologia e da
pedagogia, que vem marcando o rompimento com uma visão cartesiana e mecanicista
de mundo e de educação e, ao mesmo tempo, assumindo uma concepção mais
integradora, dialética e totalizadora na construção do conhecimento e da
prática pedagógica. Inicialmente, faz-se uma breve apresentação da origem
histórica desse movimento, discutem-se aspectos de sua conceituação e suas
implicações no campo das diferentes ciências contemporâneas para então
apresentar a interdisciplinaridade como um importante fenômeno de articulação
do processo de ensino e aprendizagem. A argumentação apresentada no texto busca
destacar que o movimento da interdisciplinaridade pode transformar
profundamente a qualidade da educação escolar por intermédio de seus processos
de ensino.
Palavras-chave:
interdisciplinaridade; ciência; educação; processo de ensino e aprendizagem;
conhecimento
ABSTRACT
The text discusses interdisciplinarity as a
contemporary movement, present in epistemological and pedagogical dimensions.
This movement is marking a break with the Cartesian and mechanist vision of the
world and education and, at the same time, assuming a more integrated,
dialectic and totalizing conception in the construction of knowledge and in
pedagogic practice. To begin with, I make a brief presentation of the
historical origin of the movement and discuss aspects of its conceptualization
and its implications in the field of different contemporary sciences before
presenting interdisciplinarity as an important phenomenon of the articulation
of the teaching-learning process. The argument presented in the text seeks to
emphasize that the interdisciplinarity movement can profoundly transform the
quality of school education by means of its teaching processes.
Key words: interdisciplinarity; science;
education; teaching-learning process; knowledge
RESUMEN
Discute la interdisciplinariedad
como un movimiento contemporáneo
presente en las dimensiones de la epistemología y de la pedagogía, que
viene marcando el rompimiento con una visión cartesiana y mecanicista de mundo
y de educación y, al mismo tiempo asumiendo una concepción más integradora,
dialéctica y totalizadora en la construcción del conocimiento y de la práctica
pedagógica. Inicialmente, se hace una breve presentación del origen histórico
de ese movimiento, se discuten aspectos de su conceptuación y sus implicaciones
en el campo de las diferentes ciencias contemporáneas para entonces presentar
la interdisciplinariedad como un importante fenómeno de articulación del
proceso de enseñanza y aprendizaje. El argumento presentado en el texto busca destacar que el movimiento de la interdisciplinariedad
puede transformar profundamente la calidad de la educación escolar por
intermedio de sus procesos de enseñanza.
Palabras clave:
interdisciplinariedad; ciencia; educación; proceso de enseñanza y aprendizaje;
conocimiento
Introdução
A discussão sobre a temática da
interdisciplinaridade tem sido tratada por dois grandes enfoques: o
epistemológico e o pedagógico, ambos abarcando conceitos diversos e muitas
vezes complementares. No campo da epistemologia, toma-se como categorias para
seu estudo o conhecimento em seus aspectos de produção, reconstrução e
socialização; a ciência e seus paradigmas; e o método como mediação entre o
sujeito e a realidade. Pelo enfoque pedagógico, discutem-se fundamentalmente
questões de natureza curricular, de ensino e de aprendizagem escolar.
O movimento histórico que vem
marcando a presença do enfoque interdisciplinar na educação constitui um dos
pressupostos diretamente relacionados a um contexto mais amplo e também muito
complexo de mudanças que abrange não só a área da educação mas também outros
setores da vida social como a economia, a política e a tecnologia. Trata-se de
uma grande mudança paradigmática que está em pleno curso.
Maria Cândida Moraes (2002), na
obra O paradigma educacional emergente, ressalta que, se a realidade é
complexa, ela requer um pensamento abrangente, multidimensional, capaz de
compreender a complexidade do real e construir um conhecimento que leve em
consideração essa mesma amplitude.
A necessidade da
interdisciplinaridade na produção e na socialização do conhecimento no campo
educativo vem sendo discutida por vários autores, principalmente por aqueles
que pesquisam as teorias curriculares e as epistemologias pedagógicas. De modo
geral, a literatura sobre esse tema mostra que existe pelo menos uma posição
consensual quanto ao sentido e à finalidade da interdisciplinaridade: ela busca
responder à necessidade de superação da visão fragmentada nos processos de
produção e socialização do conhecimento. Trata-se de um movimento que caminha
para novas formas de organização do conhecimento ou para um novo sistema de sua
produção, difusão e transferência, como propõem Michael Gibbons e outros
(1997).
Na análise de Frigotto (1995, p.
26), a interdisciplinaridade impõe-se pela própria forma de o "homem
produzir-se enquanto ser social e enquanto sujeito e objeto do conhecimento
social". Ela funda-se no caráter dialético da realidade social, pautada
pelo princípio dos conflitos e das contradições, movimentos complexos pelos
quais a realidade pode ser percebida como una e diversa ao mesmo tempo, algo
que nos impõe delimitar os objetos de estudo demarcando seus campos sem,
contudo, fragmentá-los. Significa que, embora delimitado o problema a ser
estudado, não podemos abandonar as múltiplas determinações e mediações
históricas que o constituem.
Dadas a natureza e a
especificidade deste artigo, tomar-se-á como principal ponto de reflexão o
papel da interdisciplinaridade no processo de ensinar e de aprender na
escolarização formal, buscando-se articular as abordagens pedagógica e
epistemológica, com seus avanços, limitações, conflitos e consensos.
Edgar Morin (2005), um dos
teóricos desse movimento, entende que só o pensamento complexo sobre uma
realidade também complexa pode fazer avançar a reforma do pensamento na direção
da contextualização, da articulação e da interdisciplinarização do conhecimento
produzido pela humanidade. Para ele:
[...] a reforma necessária do
pensamento é aquela que gera um pensamento do contexto e do complexo. O
pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as
inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto
planetário. O complexo requer um pensamento que capte relações, inter-relações,
implicações mútuas, fenômenos multidimensionais, realidades que são
simultaneamente solidárias e conflitivas (como a própria democracia, que é o
sistema que se nutre de antagonismos e que, simultaneamente, os regula), que
respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizador
que conceba a relação recíproca entre todas as partes. (p. 23)
Nesse sentido, a
interdisciplinaridade será articuladora do processo de ensino e de aprendizagem
na medida em que se produzir como atitude (Fazenda, 1979), como modo de pensar
(Morin, 2005), como pressuposto na organização curricular (Japiassu, 1976),
como fundamento para as opções metodológicas do ensinar (Gadotti, 2004), ou
ainda como elemento orientador na formação dos profissionais da educação.
Origem e conceitos de
interdisciplinaridade
A interdisciplinaridade, como um
enfoque teórico-metodológico ou gnosiológico, como a denomina Gadotti (2004),
surge na segunda metade do século passado, em resposta a uma necessidade
verificada principalmente nos campos das ciências humanas e da educação:
superar a fragmentação e o caráter de especialização do conhecimento, causados
por uma epistemologia de tendência positivista em cujas raízes estão o
empirismo, o naturalismo e o mecanicismo científico do início da modernidade.
Sobretudo pela influência dos
trabalhos de grandes pensadores modernos como Galileu, Bacon, Descartes,
Newton, Darwin e outros, as ciências foram sendo divididas e, por isso,
especializando-se. Organizadas, de modo geral, sob a influência das correntes
de pensamento naturalista e mecanicista, buscavam, já a partir da Renascença,
construir uma concepção mais científica de mundo. A interdisciplinaridade, como
um movimento contemporâneo que emerge na perspectiva da dialogicidade e da
integração das ciências e do conhecimento, vem buscando romper com o caráter de
hiperespecialização e com a fragmentação dos saberes.
Para Goldman (1979, p. 3-25), um
olhar interdisciplinar sobre a realidade permite que entendamos melhor a
relação entre seu todo e as partes que a constituem. Para ele, apenas o modo
dialético de pensar, fundado na historicidade, poderia favorecer maior
integração entre as ciências. Nesse sentido, o materialismo histórico e
dialético resolveu em parte o problema da fragmentação do conhecimento quando
colocou a historicidade e as leis do movimento dialético da realidade como
fundamentos para todas as ciências. Desde então, o conceito de
interdisciplinaridade vem sendo discutido nos diferentes âmbitos científicos e
muito fortemente na educação. Sem dúvida, tanto as formulações filosóficas do
materialismo histórico e dialético quanto as proposições pedagógicas das
teorias críticas trouxeram contribuições importantes para esse novo enfoque
epistemológico.
De fato, é no campo das ciências
humanas e sociais que a interdisciplinaridade aparece com maior força. A
preocupação com uma visão mais totalizadora da realidade cognoscível e com a
conseqüente dialogicidade das ciências foi objeto de estudo primeiramente na
filosofia, posteriormente nas ciências sociais e mais recentemente na
epistemologia pedagógica. Trabalhos como o de Kapp (1961), Piaget (1973),
Vygotsky (1986), Durand (1991), Snow (1959) e Gusdorf (1967) são alguns
exemplos desse movimento.
Goldman (1979) destaca que,
inicialmente, a interdisciplinaridade aparece como preocupação humanista, além
da preocupação com as ciências. Desde então, parece que todas as correntes de
pensamento se ocuparam com a questão da interdisciplinaridade: a teologia
fenomenológica encontrou nesse conceito uma chave para o diálogo entre Igreja e
mundo; o existencialismo buscou dar às ciências uma cara mais humana; a
epistemologia buscou desvendar o processo de construção do conhecimento e
garantir maior integração entre as ciências, e o materialismo histórico e
dialético buscou, no método indutivo-dedutivo-indutivo, uma via para integrar
parte e todo.
Mais voltado à pedagogia, Georges
Gusdorf lançou na década de 1960 um projeto interdisciplinar para as ciências
humanas apresentado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO). Sua obra La parole (1953) é considerada muito importante
para entender a interdisciplinaridade. O projeto de interdisciplinaridade nas
ciências passou de uma fase filosófica (humanista), de definição e explicitação
terminológica, na década de 1970, para uma segunda fase (mais científica), de
discussão do seu lugar nas ciências humanas e na educação a partir da década de
1980.
Gadotti (1993) ressalta que
atualmente, no plano teórico, se busca fundar a interdisciplinaridade na ética
e na antropologia, ao mesmo tempo em que, no plano prático, surgem projetos que
reivindicam uma visão interdisciplinar, sobretudo no campo do ensino e do currículo.
No Brasil, o conceito de interdisciplinaridade chegou pelo estudo da obra de
Georges Gusdorf e posteriormente da de Piaget. O primeiro autor influenciou o
pensamento de Hilton Japiassu no campo da epistemologia e o de Ivani Fazenda no
campo da educação.
Quanto à definição de conceitos,
ou de um conceito, para interdisciplinaridade, tudo parece estar ainda em
construção. Qualquer demanda por uma definição unívoca e definitiva deve ser a
princípio rejeitada, por tratar-se de proposta que inevitavelmente está sendo
construída a partir das culturas disciplinares existentes e porque encontrar o
limite objetivo de sua abrangência conceitual significa concebê-la numa óptica
também disciplinar. Ou, como afirma Leis (2005, p. 7), "a tarefa de
procurar definições finais para a interdisciplinaridade não seria algo
propriamente interdisciplinar, senão disciplinar".
Para esse autor (2005), na medida
em que não existe uma definição única possível para esse conceito, senão
muitas, tantas quantas sejam as experiências interdisciplinares em curso no
campo do conhecimento, entendemos que se deva evitar procurar definições
abstratas de interdisciplinaridade. Os conhecimentos disciplinares são
paradigmáticos (no sentido de Kuhn, 1989), mas não são assim os interdisciplinares.
Portanto, a história da interdisciplinaridade confunde-se com a dinâmica viva
do conhecimento. O mesmo não pode ser dito da história das disciplinas, que
congelam de forma paradigmática o conhecimento alcançado em determinado momento
histórico, defendendo-se de qualquer abordagem alternativa numa guerra de
trincheiras.
O que se pode afirmar no campo
conceitual é que a interdisciplinaridade será sempre uma reação alternativa à
abordagem disciplinar normalizadora (seja no ensino ou na pesquisa) dos diversos
objetos de estudo. Independente da definição que cada autor assuma, a
interdisciplinaridade está sempre situada no campo onde se pensa a
possibilidade de superar a fragmentação das ciências e dos conhecimentos
produzidos por elas e onde simultaneamente se exprime a resistência sobre um
saber parcelado.
Para Japiassu (1976), a
interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os
especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas no interior de um
mesmo projeto. A interdisciplinaridade visa à recuperação da unidade humana
pela passagem de uma subjetividade para uma intersubjetividade e, assim sendo,
recupera a idéia primeira de cultura (formação do homem total), o papel da
escola (formação do homem inserido em sua realidade) e o papel do homem (agente
das mudanças do mundo). Portanto, mais do que identificar um conceito para
interdisciplinaridade, o que os autores buscam é encontrar seu sentido
epistemológico, seu papel e suas implicações sobre o processo do conhecer.
Partindo do pressuposto
apresentado por Japiassu (1976), de que a interdisciplinaridade se caracteriza
pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração
real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa, exige-se que
as disciplinas,1 em seu processo constante e desejável de interpenetração, se
fecundem cada vez mais reciprocamente. Para tanto, é imprescindível a
complementaridade dos métodos, dos conceitos, das estruturas e dos axiomas
sobre os quais se fundam as diversas práticas pedagógicas das disciplinas
científicas.
Japiassu (1976) destaca ainda:
[...] do ponto de vista
integrador, a interdisciplinaridade requer equilíbrio entre amplitude,
profundidade e síntese. A amplitude assegura uma larga base de conhecimento e informação.
A profundidade assegura o requisito disciplinar e/ou conhecimento e informação
interdisciplinar para a tarefa a ser executada. A síntese assegura o processo
integrador. (p. 65-66)
As abordagens teóricas
apresentadas pelos vários autores vão deixando claro que o pensamento e as
práticas interdisciplinares, tanto nas ciências em geral quanto na educação,
não põem em xeque a dimensão disciplinar do conhecimento em suas etapas de
investigação, produção e socialização. O que se propõe é uma profunda revisão
de pensamento, que deve caminhar no sentido da intensificação do diálogo, das
trocas, da integração conceitual e metodológica nos diferentes campos do saber.
Nas palavras de Japiassu:
Podemos dizer que nos
reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes em que
ele conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, que tomar de
empréstimo a outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicos,
fazendo uso dos esquemas conceituais e das análises que se encontram nos
diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem,depois de
terem sido comparados e julgados. Donde podermos dizer que o papel específico
da atividade interdisciplinar consiste, primordialmente, em lançar uma ponte
para ligar as fronteiras que haviam sido estabelecidas anteriormente entre as
disciplinas com o objetivo preciso de assegurar a cada uma seu caráter
propriamente positivo, segundo modos particulares e com resultados específicos.
(1976, p. 75)
Epistemologia, ciência e interdisciplinaridade
Para Morin (2005, p. 44), certas
concepções científicas mantêm sua vitalidade porque se recusam ao claustro
disciplinar. A especialização do conhecimento científico é uma tendência que
nada tem de acidental. Ao contrário, é condição de possibilidade do próprio
progresso do conhecimento, expressão das exigências analíticas que caracterizam
o programa de desenvolvimento da ciência que vem dos gregos e que foi reforçado
no século XVII, principalmente com Galileu e Descartes. Para lá das diferenças
que os distinguem, eles comungam de uma mesma perspectiva metódica: pelo método
indutivo, dividir o objeto de estudo para estudar finamente seus elementos
constituintes e, depois, recompor o todo a partir daí.
Ainda que os membros do Círculo
de Viena tenham buscado elementos científicos para justificar a constituição de
uma "ciência unificada" e tenham, por via do método indutivo, buscado
encontrar a verdade concreta ou uma concepção científica de mundo, o
positivismo, desde sua fase comtiana, seguiu contribuindo para uma espécie de
fragmentação ou especialização dos saberes, com o alargamento das fronteiras
entre as disciplinas e, por conseqüência, com a divulgação de uma concepção
positiva de mundo, de natureza e de sociedade. A interdisciplinaridade, como
reação a essa concepção, vem com a proposta de romper com a fragmentação das
disciplinas, das ciências, enfim, do conhecimento.
A superação dos limites que
encontramos na produção do conhecimento e nos processos pedagógicos e de
socialização exige que sejam rompidas as relações sociais que estão na base
desses limites. No plano epistemológico (das relações sujeito/objeto), mediadas
pela teoria científica que dá sustentação lógica a essa relação, Frigotto
(1995) diz que a interdisciplinaridade precisa, acima de tudo, de uma discussão
de paradigma, situando o problema no plano teórico-metodológico. Precisamos,
segundo ele, perceber que a interdisciplinaridade não se efetiva se não
transcendermos a visão fragmentada e o plano fenomênico, ambos marcados pelo
paradigma empirista e positivista.
Frigotto (1995) mostra que, no
plano ontológico (plano material histórico-cultural), o desafio que enfrentamos
constitui antes um problema ético-político, econômico e cultural. Para ele, as
relações sociais na estruturação da sociedade moderna limitam e impedem o devir
humano, na medida em que a exclusão e a alienação fazem parte da lógica da
sociedade capitalista.
Parece evidente que a
responsabilidade pela legitimação social e científica da especialização e da fragmentação
do conhecimento recai basicamente sobre o positivismo, a partir do qual se
fortaleceram o cientificismo, o pragmatismo e o empirismo. Japiassu faz esta
constatação quando destaca:
A nosso ver, foi uma filosofia
das ciências, mais precisamente o positivismo, que constituiu o grandeveículo e
o suporte fundamental dos obstáculos epistemológicos ao conhecimento
interdisciplinar, porque nenhuma outra filosofia estruturou tanto quanto ela as
relações dos cientistas com suas práticas. E sabemos o quanto esta estruturação
foi marcada pela compartimentação das disciplinas, em nome de uma exigência
metodológica de demarcação de cada objeto particular, constituindo apropriedade
privada desta ou daquela disciplina. (1976, p. 96-97)
Nessa mesma direção, Olga Pombo
(2004) ressalta que a especialização é uma tendência da ciência moderna,
exponencial a partir do século XIX. Segundo ela:
[...] a ciência moderna se
constitui pela adopção da metodologia analítica proposta por Galileu e Descartes.
Isto é, se constituiu justamente no momento em que adoptou uma metodologia que
lhe permitia "esquartejar" cada totalidade, cindir o todo em pequenas
partes por intermédio de uma análise cada vez mais fina. Ao dividir o todo nas
suas partes constitutivas, ao subdividir cada uma dessas partes até aos seus
mais ínfimos elementos, a ciência parte do princípio de que, mais tarde, poderá
recompor o todo, reconstituir a totalidade. A idéia subjacente é a de que o
todo é igual à soma das partes. (p. 5-6)
Todavia, o desenvolvimento das
diferentes áreas científicas, sobretudo a partir da segunda metade do século
XX, vem dependendo muito mais da relação recíproca e da fertilização heurística
de umas disciplinas por outras, da transferência de conceitos, de problemas e
métodos. Há uma espécie de inteligência interdisciplinar na ciência
contemporânea.
Ou, como diz Pombo (2004, p. 10):
Trata-se de reconhecer que
determinadas investigações reclamam a sua própria abertura para conhecimentos
que pertencem, tradicionalmente, ao domínio de outras disciplinas e que só essa
abertura permite aceder a camadas mais profundas da realidade que se quer
estudar. Estamos perante transformações epistemológicas muito profundas. É como
se o próprio mundo resistisse ao seu retalhamento disciplinar. A ciência começa
a aparecer como um processo que exige também um olhar transversal.
Para ilustrar essa afirmação, a
autora exemplifica com casos bem concretos vivenciados no campo da ciência
contemporânea, como o da bioquímica, o da biofísica, o da engenharia e o da
genética; estas duas últimas áreas - a engenharia e a genética - cuja mistura
parecia impensável há 60 ou 70 anos. Algumas delas têm sido designadas como
ciências de fronteira - novas disciplinas que nascem nas fronteiras entre duas
disciplinas tradicionais -, outras como interdisciplinas - aquelas que nascem
na confluência entre ciências puras e ciências aplicadas. É nessa nova situação
epistemológica que as novas disciplinas ou ciências vêm sendo constituídas.
Nessa mesma reflexão, Olga Pombo
(2004) faz outra observação muito importante, que mostra bem o esforço da
ciência para superar o caráter disciplinar que marcou boa parte da modernidade.
Segundo ela, já é possível identificar a existência de interciências, que
seriam conjuntos disciplinares nos quais não há já uma ciência que nasça nas
fronteiras de duas disciplinas fundamentais (ciências de fronteira) ou que
resulte do cruzamento de ciências puras e aplicadas (interdisciplinas), mas que
se ligam, de forma descentrada, assimétrica, irregular, capaz de resolver um
problema preciso. Bons exemplos, segundo ela, são as ciências cognitivas e as
ciências da computação. São conjuntos de disciplinas que se encontram de forma
irregular e descentrada para colaborar na discussão de um problema comum. A
juventude urbana, o envelhecimento, a violência, o clima ou a manipulação
genética, por exemplo, são novidades epistemológicas que só um enfoque
interdisciplinar pode procurar dar resposta.
Implicações da
interdisciplinaridade no processo de ensino e aprendizagem
A escola, como lugar legítimo de
aprendizagem, produção e reconstrução de conhecimento, cada vez mais precisará
acompanhar as transformações da ciência contemporânea, adotar e simultaneamente
apoiar as exigências interdisciplinares que hoje participam da construção de
novos conhecimentos. A escola precisará acompanhar o ritmo das mudanças que se
operam em todos os segmentos que compõem a sociedade. O mundo está cada vez
mais interconectado, interdisciplinarizado e complexo.
Ainda é incipiente, no contexto
educacional, o desenvolvimento de experiências verdadeiramente
interdisciplinares, embora haja um esforço institucional nessa direção. Não é
difícil identificar as razões dessas limitações; basta que verifiquemos o
modelo disciplinar e desconectado de formação presente nas universidades,
lembrar da forma fragmentária como estão estruturados os currículos escolares,
a lógica funcional e racionalista que o poder público e a iniciativa privada
utilizam para organizar seus quadros de pessoal técnico e docente, a
resistência dos educadores quando questionados sobre os limites, a importância
e a relevância de sua disciplina e, finalmente, as exigências de alguns setores
da sociedade que insistem num saber cada vez mais utilitário.
Embora a temática da
interdisciplinaridade esteja em debate tanto nas agências formadoras quanto nas
escolas, sobretudo nas discussões sobre projeto político-pedagógico, os
desafios para a superação do referencial dicotomizador e parcelado na
reconstrução e socialização do conhecimento que orienta a prática dos
educadores ainda são enormes.
Para Luck (2001), o
estabelecimento de um trabalho de sentido interdisciplinar provoca, como toda
ação a que não se está habituado, sobrecarga de trabalho, certo medo de errar,
de perder privilégios e direitos estabelecidos. A orientação para o enfoque
interdisciplinar na prática pedagógica implica romper hábitos e acomodações,
implica buscar algo novo e desconhecido. É certamente um grande desafio (p.
68).
Não obstantes as limitações da
prática, a interdisciplinaridade está sendo entendida como uma condição
fundamental do ensino e da pesquisa na sociedade contemporânea. A ação
interdisciplinar é contrária a qualquer homogeneização e/ou enquadramento
conceitual. Faz-se necessário o desmantelamento das fronteiras artificiais do
conhecimento. Um processo educativo desenvolvido na perspectiva
interdisciplinar possibilita o aprofundamento da compreensão da relação entre
teoria e prática, contribui para uma formação mais crítica, criativa e
responsável e coloca escola e educadores diante de novos desafios tanto no
plano ontológico quanto no plano epistemológico.
Por certo as aprendizagens mais
necessárias para estudantes e educadores, neste tempo de complexidade e
inteligência interdisciplinar, sejam as de integrar o que foi dicotomizado,
religar o que foi desconectado, problematizar o que foi dogmatizado e
questionar o que foi imposto como verdade absoluta. Essas são possivelmente as
maiores tarefas da escola nesse movimento.
Na sala de aula, ou em qualquer
outro ambiente de aprendizagem, são inúmeras as relações que intervêm no
processo de construção e organização do conhecimento. As múltiplas relações
entre professores, alunos e objetos de estudo constroem o contexto de trabalho
dentro do qual as relações de sentido são construídas. Nesse complexo trabalho,
o enfoque interdisciplinar aproxima o sujeito de sua realidade mais ampla,
auxilia os aprendizes na compreensão das complexas redes conceituais,
possibilita maior significado e sentido aos conteúdos da aprendizagem,
permitindo uma formação mais consistente e responsável.
A nova espacialidade do processo
de aprender e ensinar e a desterritorialidade das relações que engendram o
mundo atual indicam claramente o novo caminho da educação diante das demandas
sociais, sobretudo as mediadas pela tecnologia. Nessa direção, emergem novas
formas de ensinar e aprender que ampliam significativamente as possibilidades
de inclusão, alterando profundamente os modelos cristalizados pela escola
tradicional. Num mundo com relações e dinâmicas tão diferentes, a educação e as
formas de ensinar e de aprender não devem ser mais as mesmas. Um processo de
ensino baseado na transmissão linear e parcelada da informação livresca
certamente não será suficiente.
Para Ivani Fazenda (1979, p.
48-49), a introdução da interdisciplinaridade implica simultaneamente uma
transformação profunda da pedagogia, um novo tipo de formação de professores e
um novo jeito de ensinar:
Passa-se de uma relação
pedagógica baseada na transmissão do saber de uma disciplina ou matéria, que se
estabelece segundo um modelo hierárquico linear, a uma relação pedagógica
dialógica na qual a posição de um é a posição de todos. Nesses termos, o
professor passa a ser o atuante, o crítico, o animador por excelência.
Para Gadotti (2004), a
interdisciplinaridade visa garantir a construção de um conhecimento
globalizante, rompendo com as fronteiras das disciplinas. Para isso, integrar
conteúdos não seria suficiente. É preciso, como sustenta Ivani Fazenda (1979),
também uma atitude interdisciplinar, condição esta, a nosso ver, manifestada no
compromisso profissional do educador, no envolvimento com os projetos de
trabalho, na busca constante de aprofundamento teórico e, sobretudo, na postura
ética diante das questões e dos problemas que envolvem o conhecimento.
Pedro Demo (2001) também nos
ajuda a pensar sobre a importância da interdisciplinaridade no processo de
ensino e aprendizagem quando propõe que a pesquisa seja um princípio educativo
e científico. Para ele, disseminar informação, conhecimento e patrimônios
culturais é tarefa fundamental, mas nunca apenas os transmitimos. Na verdade,
reconstruímos. Por isso mesmo, a aprendizagem é sempre um fenômeno
reconstrutivo e político, nunca apenas reprodutivo.
Para Paulo Freire (1987), a
interdisciplinaridade é o processo metodológico de construção do conhecimento
pelo sujeito com base em sua relação com o contexto, com a realidade, com sua
cultura. Busca-se a expressão dessa interdisciplinaridade pela caracterização
de dois movimentos dialéticos: a problematização da situação, pela qual se
desvela a realidade, e a sistematização dos conhecimentos de forma integrada.
De todo modo, o professor precisa
tornar-se um profissional com visão integrada da realidade, compreender que um
entendimento mais profundo de sua área de formação não é suficiente para dar
conta de todo o processo de ensino. Ele precisa apropriar-se também das
múltiplas relações conceituais que sua área de formação estabelece com as
outras ciências. O conhecimento não deixará de ter seu caráter de
especialidade, sobretudo quando profundo, sistemático, analítico,
meticulosamente reconstruído; todavia, ao educador caberá o papel de
reconstruí-lo dialeticamente na relação com seus alunos por meio de métodos e
processos verdadeiramente produtivos.
A escola é um ambiente de vida e,
ao mesmo tempo, um instrumento de acesso do sujeito à cidadania, à criatividade
e à autonomia. Não possui fim em si mesma. Ela deve constituir-se como processo
de vivência, e não de preparação para a vida. Por isso, sua organização
curricular, pedagógica e didática deve considerar a pluralidade de vozes, de
concepções, de experiências, de ritmos, de culturas, de interesses. A escola
deve conter, em si, a expressão da convivialidade humana, considerando toda a
sua complexidade. A escola deve ser, por sua natureza e função, uma instituição
interdisciplinar.
Olga Pombo (2003) afirma que há
um alargamento do conceito de ciência e, por isso, a necessidade de
reorganização das estruturas da aprendizagem das ciências e, por conseqüência,
das formas de aprender e de ensinar. Em outras palavras: o alargamento do
conceito de ciência é tão profundo que muitas vezes é difícil estabelecer a
fronteira entre a ciência e a política, a ciência e a economia, a ciência e a
vida das comunidades humanas, a ciência e a arte e assim por diante. Por isso,
quanto mais interdisciplinar for o trabalho docente, quanto maiores forem as
relações conceituais estabelecidas entre as diferentes ciências, quanto mais
problematizantes, estimuladores, desafiantes e dialéticos forem os métodos de
ensino, maior será a possibilidade de apreensão do mundo pelos sujeitos que
aprendem.
Só haverá interdisciplinaridade
no trabalho e na postura do educador se ele for capaz de partilhar o domínio do
saber, se tiver a coragem necessária para abandonar o conforto da linguagem
estritamente técnica e aventurar-se num domínio que é de todos e de que,
portanto, ninguém é proprietário exclusivo. Não se trata de defender que, com a
interdisciplinaridade, se alcançaria uma forma de anular o poder que todo saber
implica (o que equivaleria a cair na utopia beata do sábio sem poder), mas de
acreditar na possibilidade de partilhar o poder que se tem, ou melhor, de
desejar partilhá-lo.
A abordagem interdisciplinar,
como proposta de revisão do pensamento positivista na educação, está fortemente
presente nas atuais correntes, tendências e concepções teóricas que tratam do
fenômeno da aprendizagem. Maria Cândida Moraes (2002), ao discutir as
implicações do paradigma educacional emergente, destaca a presença desse
enfoque no construtivismo piagetiano, na pedagogia libertadora de Freire, na
teoria das inteligências múltiplas de Gardner, na abordagem histórico-cultural
de Vygotsky, na teoria da complexidade de Morin, nas formulações de Capra,
Papert, Prigogine, Bohm, Boaventura Sousa Santos e vários outros.
Considerações finais
O que apresentamos até agora nos
permite afirmar que a interdisciplinaridade, tanto em sua dimensão
epistemológica quanto pedagógica, está sustentada por um conjunto de princípios
teóricos formulados sobretudo por autores que analisam criticamente o modelo
positivista das ciências e buscam resgatar o caráter de totalidade do
conhecimento. Abordagens teóricas construídas pela óptica da dialética, da
fenomenologia, da hermenêutica e do paradigma sistêmico são formulações que
sustentam esse movimento produzindo mudanças profundas no mundo das ciências em
geral e da educação em particular.
A interdisciplinaridade, como
fenômeno gnosiológico e metodológico, está impulsionando transformações no
pensar e no agir humanos em diferentes sentidos. Retoma, aos poucos, o caráter
de interdependência e interatividade existente entre as coisas e as idéias,
resgata a visão de contexto da realidade, demonstra que vivemos numa grande
rede ou teia de interações complexas e recupera a tese de que todos os
conceitos e teorias estão conectados entre si. Ajuda a compreender que os
indivíduos não aprendem apenas usando a razão, o intelecto, mas também a
intuição, as sensações, as emoções e os sentimentos. É um movimento que
acredita na criatividade das pessoas, na complementaridade dos processos, na
inteireza das relações, no diálogo, na problematização, na atitude crítica e
reflexiva, enfim, numa visão articuladora que rompe com o pensamento
disciplinar, parcelado, hierárquico, fragmentado, dicotomizado e dogmatizado
que marcou por muito tempo a concepção cartesiana de mundo.
Portanto, a interdisciplinaridade
é um movimento importante de articulação entre o ensinar e o aprender.
Compreendida como formulação teórica e assumida enquanto atitude, tem a
potencialidade de auxiliar os educadores e as escolas na ressignificação do
trabalho pedagógico em termos de currículo, de métodos, de conteúdos, de
avaliação e nas formas de organização dos ambientes para a aprendizagem.
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