Flávia Vieira
Professora do Centro de Investigação em Educação, do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho (Braga, Portugal). E-mail:flaviav@iep.uminho.pt
RESUMO
O principal objectivo do texto é propor uma visão transformadora da supervisão pedagógica inscrita em valores da democracia, pressupondo que as finalidades e a natureza das práticas supervisiva e pedagógica devem estar articuladas e que ambas devem inscrever-se numa direcção emancipatória. Num primeiro momento, apresenta-se uma proposta de conceptualização da relação entre supervisão e pedagogia, defendendo-se a sua indissociabilidade e um conjunto de princípios que as podem orientar numa direcção potencialmente emancipatória. Num segundo momento, discutem-se condições que favorecem ou limitam a operacionalização desta direcção, tomando-se o exemplo de um projecto supervisivo em curso da Universidade do Minho desde 1995. O projecto ilustra potencialidades, constrangimentos e paradoxos da supervisão pedagógica como prática situada entre a reprodução e a transformação da ordem social implícita nos contextos de intervenção.
Palavras-chave: Supervisão. Pedagogia. Formação de professores. Transformação. Emancipação.
ABSTRACT
The main purpose of this paper is to propose a trans-formative vision of pedagogical supervision within a democratic value framework based on the assumption that the goals and the nature of supervisory and pedagogical practices should be articulated and that both should be empowering. A proposal for conceptualizing the relation between supervision and pedagogy is presented, which assumes that they cannot be dissociated and should be oriented towards empowerment through a set of guiding principles. Conditions that favor and hamper this direction are then discussed on the basis of a supervision project that has been developed at the University of Minho since 1995. This project illustrates the potential value, constraints and paradoxes of supervision as a practice that stands between the reproduction and the transformation of the social order that is implicit in the contexts of intervention.
Key words: Supervision. Pedagogy. Teacher's education. Transformation. Empowerment.
Propósitos do texto
O presente texto defende uma visão transformadora da supervisão pedagógica, pressupondo que as finalidades e a natureza das práticas supervisiva e pedagógica devem estar articuladas e que ambas devem inscrever-se numa direcção emancipatória. Inicialmente, apresenta-se uma proposta de conceptualização da relação entre supervisão e pedagogia, evidenciando a sua indissociabilidade e alguns princípios que as podem orientar naquela direcção. Na sequência, discutem-se possibilidades de operacionalização do quadro ético-conceptual proposto, to-mando-se o exemplo de um projecto supervisivo em curso da Universidade do Minho desde 1995, desenvolvido com estagiários no campo da educação em línguas, no ano final da sua licenciatura em ensino.1
Ao longo da minha história profissional de formadora e investigadora da formação, tenho aprendido a desconfiar da razoabilidade e ressonância dos discursos educacionais construídos à margem das escolas e dos professores, ou até à sua custa, valorizando aqueles que se constroem em estreita relação com a experiência dos professores. Ainda assim, e embora as ideias apresentadas neste texto integrem uma teoria da acção supervisiva que resulta do trabalho com supervisores e professores no campo da educação em línguas, há razões para colocar em dúvida a sua consistência e impacto, e uma das minhas intenções é também evidenciar constrangimentos e paradoxos que afectam a sua operacionalização e que configuram a relação entre supervisão e pedagogia como um fenómeno sempre local e inacabado, marcadamente ideológico, situado entre a reprodução e a transformação da ordem social implícita nas situações de intervenção.
Supervisão e pedagogia: proposta de conceptualização
Supervisão e pedagogia: breve definição de termos
No domínio educacional, a noção de supervisão tem uma herança histórica associada às funções de inspecção e controlo (Duffy, 1998; McIntyre & Byrd, 1998), apesar da viragem radical operada com o movimento da supervisão clínica, iniciado nos Estados Unidos a partir da década de 1960 e introduzido em Portugal por Alarcão na década de 1980 (Alarcão, 1982). No contexto do presente trabalho, afastamo-nos de uma concepção institucional da supervisão como processo de gestão organizacional associado à noção de "escola reflexiva" (Alarcão, 2001), que não tem tradição no nosso país, e definimos a supervisão como teoria e prática de regulação de processos de ensino e de aprendizagem em contexto educativo formal, instituindo a pedagogia como o seu objecto. Esta definição abrange práticas de auto-supervisão e supervisão acompanhada, mas é sobretudo às segundas que nos referiremos ao longo do texto, em particular no contexto do estágio em formação inicial.
Opta-se por falar em pedagogia e não em didáctica ou metodologia de ensino pela abrangência transdisciplinar do primeiro termo, bem visível na pequena grande obra de Paulo Freire, intitulada Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa (2002), onde o pedagogo apresenta 27 dimensões essenciais à compreensão do acto educativo como projecto praxeológico, epistemológico, ontológico e ideológico. Ao centrar-se no ensino e aprendizagem de conhecimentos disciplinares específicos, as didácticas ou metodologias de ensino têm produzido um conhecimento relativamente fragmentado sobre a educação escolar, mostrando alguma dificuldade em promover aquilo que Correia (1999, p. 22) descreve como uma "'racionalidade comunicacional', isto é, uma racionalidade construída na troca entre (...) as diferentes linguagens e concepções disciplinares do trabalho". Segundo o autor, as "novas didácticas" necessárias à "invenção de consensos possíveis entre determinantes intrínsecas a cada um dos ramos do saber" deslocariam o seu eixo de referência para as "determinantes da acção educativa, que é sempre o resultado de uma dinâmica interdisciplinar, mesmo quando gerida por um único professor" (idem, ibid.). O termo "pedagogia" pode talvez responder melhor a este desafio, evitando uma redução do campo da reflexão didáctica às dimensões mais directamente afectas ao conteúdo substantivo das disciplinas escolares.
A supervisão e a pedagogia comportam uma componente conceptual e outra experiencial, cuja integração resulta no que podemos designar como praxis, definida por Van Manen (1990, p. 128) como "thoughtful action: action full of thought and thought full of action". Sendo actividades profissionais, teorizá-las implica construir teorias práticas ou teorias de acção, de orientação normativa, as quais apresentam duas faces: teoria perfilhada e teoria-em-uso, cujas (in)congruências importa desocultar e analisar, no sentido de compreender que factores elevam ou reduzem o seu potencial transformador, e também no sentido de reformular a própria teoria e a realidade que ela cria (Argyris & Schön, 1974).
Embora as teorias que mais determinam as opções de quem pratica a supervisão e a pedagogia sejam aquelas que os profissionais constroem em estreita relação com a sua acção local, as teorias públicas desempenham um papel regulador e explicativo, reflectindo e promovendo intencionalidades e posicionamentos face ao mundo, e condicionando as possibilidades de resignificação da realidade (Segall, 2004). Na verdade, todo o conhecimento educacional é ideologicamente marcado e, portanto, pedagógico, ainda que não seja intencionalmente pedagogizado. Como afirma Alves (2003, p. 35), "Todo pensamento sai do nosso ventre, como o fio da teia. Cada teoria é um acessório da biografia, cada ciência, um braço do interesse". É este também o caso do presente texto.
Supervisão e pedagogia: que relação?
Na medida em que a supervisão permite a regulação da qualidade da pedagogia, ela representa uma condição da sua compreensão e renovação. Isto significa que a pedagogia sem supervisão é menos pedagógica, tal como o será a supervisão sem uma visão da pedagogia. Na expressão "supervisão pedagógica", o adjectivo reporta-se não apenas ao objecto da supervisão - a pedagogia -, mas também à sua função potencialmente educativa. Entende-se que a supervisão, quando orientada por uma visão crítica de pedagogia, torna a acção pedagógica mais consciente, deliberada e susceptível à mudança, permitindo o reconhecimento da sua complexidade e incerteza e impedindo a formulação de soluções técnicas e universais para os problemas "pantanosos" que nela se colocam (Schön, 1987).
Esta perspectiva prende-se com a natureza inefável da pedagogia, a qual obriga o educador a uma reflexão constante e continuada sobre aquilo que (não) torna a sua acção "pedagógica": "If pedagogy were absent in a particular situation, how would we be able to tell the difference?" (Van Manen, 1990, p. 149). É a inefabilidade da pedagogia que exige
(...) um atento e abrangente olhar supervisivo que contemple e atente ao perto e ao longe, ao dito e ao não dito, ao passado e às hipóteses de futuro, aos factos e às suas interpretações possíveis, aos sentidos sociais e culturais, à manifestação do desejo e à possibilidade/impossibilidade da sua concretização, ao ser e à circunstância, à pessoa e ao seu devir. (Sá-Chaves, 2000, p. 127)
Assim concebidas, as actividades supervisiva e pedagógica são indissociáveis e fazem parte de um mesmo projecto: indagar e melhorar a qualidade da acção educativa. Sempre que um educador regula a sua acção (auto-supervisão), as duas actividades fundem-se numa só, tornando-se praticamente indistinguíveis do ponto de vista epistemológico. Contudo, elas tendem a distinguir-se nos casos da supervisão pedagógica acompanhada, sobretudo quando a função da supervisão é exercida por alguém com um papel relativamente especializado ("supervisor", "orientador", "consultor", "coordenador pedagógico", "conselheiro crítico" etc.). São estas situações de assimetria estatutária e funcional dos participantes do acto supervisivo que têm justificado um estudo mais aprofundado da teoria e prática da supervisão no contexto português, o que explica que a sua emergência e afirmação como área de conhecimento se associe fortemente à orientação da prática pedagógica em estágio, e que a criação de cursos de pós-graduação em supervisão pedagógica se tenha alicerçado na necessidade de formar os supervisores das escolas que acolhem os estagiários das instituições de ensino superior. No entanto, diria que a finalidade principal da supervisão acompanhada será ajudar os formandos a tornar-se supervisores da sua própria prática e que, se isso não acontecer, falhou no essencial: dotá-los da vontade e capacidade de (re)conceptualizarem o seu saber pedagógico e participarem, individual e colectivamente, na (re)construção da pedagogia escolar.
Supervisão pedagógica e transformação da educação
Enquanto actividade de natureza conceptual e experiencial, a pedagogia é movida, a meu ver, por quatro forças estruturantes e interrelacionadas, frequentemente em tensão: visão <-> acção <-> reflexão <-> contexto.Transformar as teorias e práticas pedagógicas implica indagar e refazer o modo como estas forças se (des)articulam ou (re)forçam entre si. Esta será a principal função da supervisão pedagógica como prática de regulação.
Nesta perspectiva, a transformação da educação exige um investimento sistemático e deliberado na reconstrução da visão de educação que orienta a acção educativa e também na problematização dos contextos de acção<->reflexão profissional. E é aqui que o contributo da supervisão acompanhada pode ser crucial: promovendo a reflexão crítica sobre as forças históricas e estruturais que condicionam a pedagogia; apoiando a construção colaborativa de uma visão da educação capaz de resistir ao poder erosivo dessas forças; interrogando as inúmeras formas de autoridade a que o educador está sujeito; orientando-o para a gestão da incerteza e da complexidade; questionando os interesses aos quais a escola serve; mantendo a esperança na possibilidade de melhorar as condições irracionais, injustas e insatisfatórias da educação.
Não se trata, portanto, de uma supervisão qualquer, mas sim de uma supervisão de natureza transformadora eorientação emancipatória, potencialmente transgressora e subversiva, assente nos valores democráticos da liberdade e da responsabilidade social, que é capaz de reconhecer a ausência e reclamar a (maior) presença desses valores nas práticas da educação escolar, e também nas suas próprias práticas. Trata-se de uma supervisão que se move lentamente entre o que a educação é e o que deve ser, explorando o possível, mas duvidando sempre do seu próprio valor, e encontrando nessa dúvida a sua principal razão de ser.
Waite (1995, p. 87) e Glickman et al. (2004, p. 8) usam as grafias superVisão e SuperVisão para sublinhar a necessidade de construir uma visão comum do que a educação deve ser, defendendo uma prática supervisiva colegial e dialógica, orientada para a construção de uma sociedade democrática e assente numa concepção do ensino como acto moral e político. Entende-se que uma pedagogia para a autonomia se inscreve nesta concepção e constitui uma direcção defensável para a supervisão, promovendo nos professores e nos seus alunos "a competência para se desenvolverem como participantes autodeterminados, socialmente responsáveis e criticamente conscientes em (e para além de) ambientes educativos, por referência a uma visão da educação como espaço de emancipação (inter)pessoal e transformação social" (Jiménez Raya et al., 2007, p. 1). Só esta visão de educação garantirá que a autonomia do educador se construa em estreita ligação com a autonomia dos educandos e não à sua margem, instituindo a autonomia como interesse colectivo.
No cenário proposto, podemos avançar alguns princípios reguladores de uma prática supervisiva de natureza transformadora e orientação emancipatória (Vieira, 2006, p. 31):
• Articulação entre prática reflexiva e pedagogia para a autonomia, com reflexos na definição das finalidades, conteúdos e tarefas da supervisão;• Indagação de teorias, práticas e contextos como condição de criticidade, necessária a que o professor se torne consumidor crítico e produtor criativo do seu saber profissional;• Desenho, realização e avaliação de planos de intervenção, onde o professor desafie os limites da sua liberdade e explore campos de possibilidade no ensino e na aprendizagem, por referência a uma visão transformadora da educação escolar;• Criação de espaços de decisão do professor e de condições para que este assuma papéis potencialmente emancipatórios, por referência a critérios como a reflexividade, a (inter)subjectividade, a negociação e a regulação;• Promoção da comunicação dialógica, através do cruzamento de experiências, interesses, expectativas, necessidades e lingua-gens, num processo interactivo que se caracteriza por um elevado grau de contingência, simetria e democraticidade, facilitador da construção social do saber;• Avaliação participada dos processos e resultados do desenvolvimento profissional e da acção pedagógica, mediante critérios de qualidade definidos à luz de uma visão transformadora da educação.
O projecto que a seguir se apresenta explora estes princípios, não sem obstáculos e limitações.
Possibilidades de transformação: o caso de um projecto
Génese e natureza do projecto
O projecto de supervisão aqui referido tem sido desenvolvido com colegas do Departamento de Metodologias da Educação da Universidade do Minho, no âmbito do estágio pedagógico na educação em línguas (Inglês e Alemão; v. nota 1), desde 1995 (Moreira, 2006; Moreira et al., 1999 e 2006). Embora procure aproximar-se da visão de supervisão defendida, ilustra igualmente alguns dos constrangimentos e paradoxos inerentes à sua operacionalização neste contexto de formação, os quais poderão ser comuns a iniciativas análogas.
Na génese do projecto, estiveram dois estudos realizados por duas formadoras da equipa no âmbito de provas académicas, nos quais se explorou a possibilidade de desenvolver a autonomia dos alunos na aprendizagem de uma língua estrangeira (Vieira, 1996; 1998) e as potencialidades da investigação-acção como estratégia de formação reflexiva de professores de língua estrangeira em estágio (Moreira, 1996; 2001). Na sua génese esteve também a consciência da equipa de que, na instituição a que pertence, não existia (e não existe ainda), verdadeiramente, um projecto consistente para a supervisão no estágio, verificando-se alguma ambiguidade nas suas finalidades e estratégias e na visão de educação que promove. Tal como noutros países, a formação inicial de professores tem estado fortemente associada à tradição racionalista técnica da formação profissional, subvalorizando uma epistemologia da prática e mantendo um divórcio maior ou menor entre as universidades e as escolas. Na verdade, este divórcio simplifica o trabalho dos formadores universitários, pois, como Argyris e Schön já afirmavam, há mais de três décadas, "the practical tends to have been separated from the theoretical not because it is easy but because it is so difficult to understand" (1974, p. 195).
Numa perspectiva de maior integração entre teoria e prática, o conhecimento construído na supervisão pedagógica será essencial à validação e revisão das teorias perfilhadas pela academia, e não um subproduto dessas teorias. Isto significa que a actividade dos supervisores deve articular objectivos de formação e de investigação, contribuindo para o desenvolvimento do conhecimento supervisivo e pedagógico. Assim, e com base nos estudos acima referidos, a equipa desenhou um projecto que procura promover e investigar processos de formação reflexiva dos estagiários em articulação com uma pedagogia para a autonomia no ensino de línguas, recorrendo à investigação-acção como estratégia formativa. Os seus objectivos são: problematizar contextos pedagógicos e de formação; indagar teorias (e) práticas pedagógicas; promover uma pedagogia centrada nos alunos e na aprendizagem; valorizar a autodirecção e a colaboração no desenvolvimento profissional; promover um posicionamento crítico face à profissão. A concretização destes objectivos pode ser facilitada pela condução de projectos de investigação-acção, na medida em que esta tem uma orientação prática e situacional, valoriza a construção participada do conhecimento, direcciona-se para a mudança e melhoria da acção, centra-se no desenvolvimento integrado do professor e dos alunos e visa a promoção da sua autonomia. Globalmente definida como uma actividade de questionamento sistemático das práticas para uma melhoria da racionalidade e justiça das mesmas e dos contextos em que decorrem (Carr & Kemmis, 1986), a investigação-acção articula-se com os princípios supervisivos acima propostos.
As noções de "ensino como investigação" e "professor-investigador" têm implicações nos papéis dos estagiários, elevando o seu controlo sobre a produção de conhecimento pedagógico e a renovação de práticas. Defende-se o seu envolvimento na indagação crítica da experiência de formação e de ensino de línguas, com o apoio dos supervisores, funcionando a investigação-acção como estratégia de (auto-)formação ao serviço de uma pedagogia que crie espaços pedagógicos para a reflexão dos alunos sobre a língua e o processo de aprendê-la, a experimentação de estratégias (meta)cognitivas e sócio-afectivas, a regulação das aprendizagens e a negociação de sentidos e decisões.
Importa sublinhar que o nosso propósito não é formar professores-investigadores, mas sim professores reflexivos, com predisposição e capacidade para:
• Compreender a educação em línguas e o seu papel no currículo;• Compreender a teoria e a prática de uma pedagogia para a autonomia no ensino de línguas;• Conceber o ensino de línguas como uma actividade indagatória e exploratória;• Desafiar rotinas, convenções, tradições (ser subversivo/a, se necessário);Partilhar teorias e práticas pedagógicas com os pares;• Encorajar os alunos a assumir posições críticas face a valores e práticas sociais e educativos, envolvendo-os na procura de soluções adequadas (embora não necessariamente ideais);• Partilhar teorias pedagógicas, responsabilidades e decisões com os alunos;• Reconhecer e aceitar que os alunos podem não pensar como o/ a professor/a e que nem sempre é fácil, ou até desejável, chegar a uma única conclusão ou ponto de vista;• Articular a dimensão pessoal da aprendizagem com a natureza social e interactiva da cultura da sala de aula;• Promover a comunicação, onde todos têm o direito de se expressar e de contribuir para a co-construção de sentidos;• Recolher informação dos/sobre os alunos, de modo a compreender os seus processos de aprendizagem e a sua evolução (por ex., através do diálogo, observação, questionários, entrevistas etc.);• Analisar a informação recolhida com o objectivo de melhorar as práticas de ensino e de aprendizagem, envolvendo os alunos em processos de reflexão sobre essas práticas e negociação pedagógica;• Integrar os alunos nas práticas avaliativas e encontrar formas de incorporar a sua competência de aprendizagem na avaliação global das aprendizagens (por ex., através da negociação de critérios de avaliação e da auto-avaliação).
O papel das supervisoras da equipa, em colaboração com os supervisores das escolas, é apoiar o desenho, desenvolvimento e avaliação dos projectos de investigação-acção dos seus estagiários, definidos com base na análise dos contextos de acção e incidentes em áreas diversificadas da educação em línguas. Os projectos são documentados em portefólios individuais de natureza reflexiva, que incluem dados de avaliação do seu impacto nos professores e nos alunos. Na avaliação da estratégia supervisiva por parte da equipa, as principais fontes de informação são os portefólios dos estagiários e alguns estudos de investigação centrados em dimensões particulares do projecto. Essa avaliação tem permitido identificar potencialidades e limitações do trabalho desenvolvido, referidas no ponto seguinte.
Em suma, o projecto surgiu como uma tentativa de criar uma microcultura de supervisão que se afastava das práticas institucionais mais correntes, não só pela direcção que procurava imprimir aos processos supervisivos e pedagógicos, mas ainda porque nele se articulavam objectivos formativos e investigativos, ou seja, a equipa dinamizadora passou a assumir uma postura investigativa face à sua prática supervisiva, promovendo, em simultâneo, uma atitude investigativa nos estagiários face à sua prática pedagógica, por meio da realização de projectos de investigação-acção em sala de aula. Assim se criavam condições para a construção progressiva e sustentada de uma teoria da acção supervisiva, em estreita articulação com uma teoria da acção pedagógica, ambas sujeitas a um escrutínio continuado.
Avaliação de práticas: entre a reprodução e a transformação?
Uma das principais finalidades de uma formação reflexiva é a interrogação da visão de educação que subjaz às práticas de ensino, assim como dos contextos em que elas se realizam, nomeadamente no sentido de desocultar as forças históricas e estruturais que condicionam o nosso pensamento e acção e encontrar alternativas que se afigurem mais satisfatórias. Nesse sentido, a supervisão pedagógica pode ser entendida como uma actividade de problematização da realidade e imaginação de possibilidades, ou ainda, como "um jogo de subversão de regras(...), onde o prazer de jogar reside em transgredir o que torna as práticas educativas irracionais e injustas, instituindo princípios que as tornem mais racionais e justas" (Fernandes & Vieira, 2006, p. 234). Assim, um dos objectivos do projecto supervisivo em curso é promover a indagação e intervenção críticas, apoiando o desenho e a condução de planos de acção pedagógica que entram, muitas vezes, em choque com a cultura escolar instalada, nomeadamente pela adopção de uma abordagem que procura desenvolver a autonomia dos alunos e dos professores.
Quando chegam às escolas, os estagiários detêm, usualmente, representações acerca do seu papel e do papel dos alunos que se aproximam genericamente do quadro de uma pedagogia para a autonomia, o que pode ser observado nas respostas que dão a um questionário inicial sobre as suas teorias pessoais, onde explicitam os princípios pedagógicos que defendem e rejeitam com especial convicção. Para este posicionamento concorre alguma da sua formação académica anterior, em particular no âmbito das disciplinas de Metodologia de Ensino, onde se exploram os pressupostos e princípios de acção da abordagem proposta em estágio. Durante e após o desenvolvimento dos projectos, e apesar das diversas dificuldades que enfrentam, os estagiários avaliam positivamente a experiência de estágio, reconhecendo inúmeras potencialidades à investigação-acção como estratégia formativa que visa aliar um ensino reflexivo a uma pedagogia centrada nos alunos. Salientam ganhos importantes: a formação de profissionais mais conscientes e mais responsáveis; o desenvolvimento de uma atitude investigativa, crítica e reflexiva face à profissão; a reconceptualização de teorias e práticas pessoais; uma maior vontade e confiança na experimentação pedagógica; um maior conhecimento dos alunos e o desenvolvimento das suas competências de comunicação e de aprendizagem; a promoção da autonomia e emancipação profissionais (Moreira et al., 2006). É surpreendente, e por vezes mesmo comovente, a forma entusiasta como estes jovens professores, após terem passado pelas dificuldades inerentes a um ano de estágio e sabendo que dificilmente encontrarão emprego, devido ao excedente de professores no sistema de ensino português, relatam as suas pequenas lutas por uma educação melhor, numa sessão que anualmente dinamizamos para os seus colegas em início de estágio. Sente-se na sua voz uma força interior que exteriorizam sem receios, dando conta dos dilemas sentidos e das conquistas alcançadas, encorajando os colegas e revelando na sua postura profissional que não há lugar à mudança sem esperança, uma vez que, e como diz Van Manen (1990), ter esperança significa acreditar na possibilidade.
Contudo, e a par dos ganhos da abordagem supervisiva desenvolvida, a avaliação dos estagiários também tem permitido identificar constrangimentos de ordem cultural, metodológica e pessoal, relativos, por exemplo, às tradições do ensino e ao choque da realidade, à inexperiência profissional e às dificuldades inerentes à investigaçãoacção, à falta de hábitos de reflexão e de exposição ao outro, e aos receios associados à avaliação do seu desempenho. Assim, e embora reconhecendo o potencial transformador da abordagem, reconhecem igualmente problemas na sua operacionalização, evidenciando a existência de uma tensão permanente entre ideais e práticas. A mesma tensão é identificada em estudos realizados por elementos da equipa sobre diferentes vertentes do projecto (v. Paiva et al., 2006), os quais apontam para a validação das nossas escolhas ético-conceptuais e metodológicas, mas também para a existência de factores que impõem limites à criticidade e à democraticidade dos processos formativos. Estes factores reportam-se, sobretudo, a circunstâncias paradoxais da prática supervisiva.
Desde logo, verifica-se a existência do dilema emancipação-sujeição, criado pela contradição entre a intenção de promover a autonomia dos estagiários e o facto de actuarmos como uma espécie de modelo para o que (não) é aceitável pensar ou fazer em educação. Os efeitos deste paradoxo são acentuados pela assimetria experiencial e estatutária dos participantes, e ainda pela tensão latente entre apoio e avaliação no exercício das funções supervisivas. Tudo isso pode inibir uma relação de sinceridade ou fomentar atitudes de conformismo acrítico ou camaleónico como estratégia de sobrevivência, o que afecta, necessariamente, o potencial emancipatório da formação.
O tempo constitui também um constrangimento particularmente significativo neste contexto formativo, onde a transição do papel de aluno a professor implica transformações complexas e descontínuas que se operam lentamente. Paradoxalmente, a necessária centralidade da experiência pedagógica nos processos supervisivos coloca fronteiras ao que é legítimo esperar, na medida em que a novidade e a urgência da prática dificilmente se conciliam com o tempo necessário à sua problematização, obrigando-nos a moderar as nossas expectativas enquanto supervisoras e, portanto, também os efeitos da nossa acção. Contra a nossa intenção, o tempo adquire por vezes uma dimensão "empresarial" traduzida na procura de soluções rápidas para problemas técnicos, o que reduz a possibilidade de instaurar um "tempo público" (Giroux, 2007), desacelerado e assente num diálogo continuado de des/reconstrução do acto educativo, mais consonante com a inefabilidade e a complexidade da pedagogia, e mais potenciador de um olhar supervisivo expandido.
Por outro lado, temos verificado, ao longo dos anos, que os tipos de intervenções didácticas desenvolvidas pelos estagiários nos seus projectos de investigação-acção, apesar de direccionados ao desenvolvimento da autonomia dos alunos, exploram pouco a sua dimensão política em comparação com a sua dimensão psicológica (Benson, 1997), focando-se principalmente na promoção de estratégias de aprendizagem associadas aos processos de compreensão e produção textuais. Também aqui, paradoxalmente, a focalização nestes processos, essencial ao desenvolvimento da competência de comunicação dos alunos, acaba por desviar a nossa atenção de questões curriculares mais transversais, como o papel social da educação em línguas ou o papel dos programas e manuais escolares na determinação do conhecimento válido. Observa-se, ainda, alguma dificuldade na fundamentação teórica das estratégias de acção desenvolvidas, assim como na avaliação do seu impacto através da recolha e análise sistemáticas de informação, o que pode colocar em risco a consistência dos projectos e a perdurabilidade das aprendizagens profissionais.
Por último, não é possível ignorar a força socializadora dos contextos profissionais, tendencialmente conservadores, em que esta formação decorre. Por um lado, o estágio coloca os estagiários entre dois mundos - o da comunidade académica de onde vêm e o da comunidade escolar em que começam a integrar-se no seu novo papel de professores. De notar que é na segunda comunidade, e não na primeira, que se inscreve o seu futuro e também grande parte do seu passado, o que favorece a sujeição às suas regras, mesmo quando estas transgridem a visão de educação defendida. Por outro lado, e porque o projecto assenta numa orientação emancipatória da supervisão que não é consensual na academia, torna-se difícil a sua afirmação nas comunidades universitária e escolar. Podemos mesmo dizer que as suas condições de emergência e sustentabilidade se têm consolidado num jogo de resistências que, em simultâneo, justifica a sua relevância social e fragiliza a sua expansão.
Em síntese, a avaliação do projecto tem-nos permitido compreender potencialidades e limitações de uma abordagem supervisiva que, visando a emancipação profissional dos estagiários e a transformação das práticas escolares, encontra obstáculos à concretização deste propósito. Na dinâmica visão <-> reflexão <-> acção <->contexto, torna-se claro que os elementos "visão" e "contexto" entram frequentemente em conflito, condicionando a natureza, âmbito e impacto da reflexão para/sobre a acção e, também, necessariamente, a natureza, âmbito e impacto da acção. Assim, e reconhecendo que não poderemos "conferir à pedagogia uma autonomia que ela não tem" (Kuenzer, 2002, p. 64), na medida em que se inscreve num quadro sócio-educativo que instaura limites ao poder dos professores na sua transformação, devemos igualmente reconhecer que não poderemos conferir à supervisão pedagógica uma autonomia que ela não tem. Face aos constrangimentos encontrados, devemos mesmo perguntar se ela serve a uma finalidade transformadora ou reprodutora, e se concorre para a assunção de posições críticas ou conservadoras.
A nossa resposta a este tipo de interrogação é cada vez mais re(ide)alista: tendo em conta a realidade com que nos deparamos e sem perdermos de vista os nosso ideais, procuramos criar culturas de possibilidade significativa, ou seja, ambientes de trabalho onde, simultaneamente, interrogamos os contextos de acção e nos ajustamos a eles, pensando e actuando contra e a favor do sistema. Esta constatação remete-nos para a natureza ideológica da abordagem da equipa, a qual se situa algures entre o status quo e uma visão ideal de educação, ou entre a reprodução e a transformação, explorando a contradição como espaço de inquietação e potencial mudança. Admitindo que a transformação das relações sociais e produtivas não depende apenas da escola e exige a "coincidência entre transformação das consciências e das circunstâncias" (Kuenzer, op. cit., p. 77), cumpre-nos, na posição de formadoras, elevar, em nós e nos outros, a consciência das circunstâncias como passo para a transformação de ambas, numa posição que não é apenas realista ou idealista, mas onde a realidade e os ideais se misturam na luta permanente e incerta por uma educação melhor.
E ainda... sobre a construção e distribuição do conhecimento
Podemos dizer que o projecto aqui discutido traduz uma forma de construir e divulgar conhecimento através da indagação crítica e (re)construção de teorias e práticas locais, contrariando uma visão aplicacionista da formação e a ideia do conhecimento supervisivo como subproduto de teorias académicas desenvolvidas à margem das escolas. No entanto, é também aqui, nas questões da construção e divulgação do conhecimento, que reside um dos seus principais paradoxos.
De facto, a teoria de acção supervisiva aqui apresentada decorre do trabalho de uma equipa que é realizado de uma determinada posição, a de formadoras e investigadoras da formação, o que porventura nos distancia da pedagogia, mais do que o desejável. Apesar de ela constituir o centro da nossa acção supervisiva, só indirectamente surge no conhecimento produzido sobre essa acção, e dar-lhe outro destaque implicaria a parceria dos estagiários e dos supervisores das escolas na sistematização e divulgação desse conhecimento. Por outro lado, e embora estes sejam participantes centrais do projecto, têm um papel reduzido na (re)construção e disseminação de teorias e práticas da supervisão, tarefas estas que ficam, sobretudo, também a nosso cargo.
Opera-se, dessa forma, uma divisão social de trabalho que acaba por conferir supremacia a um determinado tipo de conhecimento (supervisivo) e a determinados agentes de produção desse conhecimento (as supervisoras-investigadoras). Esta é, talvez, a principal limitação e obstáculo epistemológico do projecto, reflectindo a existência de uma contradição essencial entre a sua direcção emancipatória e o papel pouco expressivo de alguns dos seus intervenientes na sistematização e disseminação do saber pedagógico, assim como na (re)construção e disseminação do saber supervisivo.
Embora a assimetria estatutária dos diversos participantes seja a explicação mais conveniente para esta situação, teremos de reconhecer que é uma explicação ideologicamente marcada por uma tradição académica que sempre relegou os professores das escolas para um plano secundário na produção e difusão do conhecimento educacional, criando, dessa forma, uma cegueira epistemológica a outras formas de construir e vulgarizar esse conhecimento, e também a outras formas de conhecimento para além das que são convencionalmente validadas e legitimadas pela academia. Para reconhecer e procurar superar esta cegueira, é necessário admitir que as actuais condições de produção e distribuição do conhecimento distorcem e mistificam a realidade, silenciando, em maior ou menor grau, as vozes daqueles que a experienciam em primeira mão e construindo discursos que, por muito prestígio que alcancem na comunidade científica, podem revelar-se pouco relevantes à transformação da educação e da sociedade. Portanto, e embora o nos-so projecto pressuponha a participação de outros na reconstrução do saber educacional, teremos de aceitar que há ainda um longo caminho a percorrer na concretização de todas as implicações desse pressuposto, até que esses outros sejam parte de um nós.
Concluindo...
Ao longo deste texto, procurei defender uma visão transformadora da supervisão pedagógica, partindo de uma proposta transdisciplinar de conceptualização da relação entre supervisão e pedagogia e passando à discussão de um projecto de supervisão desenvolvido com estagiários de línguas, em curso na Universidade do Minho há mais de uma década.
O exemplo ilustra uma forma de operacionalização do quadro ético-conceptual proposto, evidencia formas de articulação entre a investigação académica e a actividade supervisiva, salienta o papel que a investigação-acção pode assumir, como estratégia de formação profissional ao serviço de uma pedagogia para a autonomia nas escolas, e traduz uma forma de construir e divulgar conhecimento através da indagação crítica e (re)construção de teorias e práticas locais. Em cada um destes aspectos, o projecto evidencia ainda um conjunto de constrangimentos e paradoxos que afectam uma orientação emancipatória na formação inicial de professores, possivelmente presentes em iniciativas análogas, os quais nos remetem para a dimensão ideológica da supervisão pedagógica como prática situada entre a reprodução e transformação da ordem social implícita nos contextos de intervenção.
Se a base experiencial das ideias aqui apresentadas eleva, potencialmente, a sua ressonância e razoabilidade, também será verdade que lhes impõe limites decorrentes das fronteiras do meu quadro conceptual, dos meus filtros interpretativos e, ainda, da natureza local das experiências que servem de suporte ao desenvolvimento das minhas teorias práticas. Porque as teorias práticas são simultaneamente âncoras e instrumentos de cristalização da acção, devemos obrigar-nos a um esforço continuado de autocrítica. Como afirmam Argyris e Schön (1974, p. 27), "one must treat his theory-in-use as both a psychological certainty and an intellectual hypothesis". É dessa forma que as ideias aqui propostas e discutidas deverão também ser lidas: como convicções que, emergindo da acção e suportando a acção, terão de ser permanentemente interrogadas e revistas, e em cuja (in)certeza residirá a sua força transformadora. São, por isso mesmo, ideias fundadas na esperança, porque é esta que permite a possibilidade, negando qualquer noção de fechamento. Como diz Bauman (2007, p. 77), "a esperança é sempre a esperança de plenitude, mas o que mantém viva a esperança e assim conserva a existência aberta e em movimento é precisamente a sua incompletude".
Nota
1. As licenciaturas em ensino da Universidade do Minho a que se reporta este projecto, presentemente em fase de remodelação decorrente do Processo de Bolonha, têm a duração de cinco anos: quatro anos de formação académica em domínios da área de docência e da educação e um ano de estágio profissional, realizado pelos alunos estagiários em pequenos grupos, em escolas básicas e secundárias que têm um protocolo com a instituição. A supervisão do estágio é assegurada por dois supervisores de cada área disciplinar, um da escola de acolhimento e outro da universidade, podendo este último pertencer a departamentos da Especialidade ou da Educação. O projecto aqui referido abrange apenas os estagiários de Inglês e Alemão que, anualmente, são atribuídos à equipa que o tem dinamizado. Esta tem sofrido alterações ao longo dos anos, tendo até este momento contado com a participação, para além de mim, das colegas Maria Alfredo Moreira, Isabel Barbosa, Madalena Paiva, Isabel Sandra Fernandes, Graça Branco e Júlia Amaro.
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